Quando o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) ainda era um rapazinho, a sina do personagem bíblico Noé lhe causava um profundo pesar. Na imaginação daquele sensível adolescente, nenhuma experiência poderia ser mais trágica do que o drama vivido pelo patriarca nos 40 dias em que ficou trancafiado em sua arca para escapar do dilúvio, sabendo que o mundo lá fora se transformara em um grande abismo, e que já não existiam mais montanhas nem flores, nem sol nem estrelas.
Alguns anos depois, Proust mudou de ideia. Noé era, na verdade, um privilegiado – enquanto o universo se desfazia lá fora, só ele, no recolhimento da arca, conservava a memória do que existira de beleza no mundo.
Ironicamente, o autor teria destino semelhante ao de Noé. Nas quase duas décadas em que passou praticamente confinado em seu quarto, esse asmático que ficava semanas seguidas sem ver o sol extraiu de sua memória a matéria-prima para compor um romance que é pura luminosidade: o monumental Em Busca do Tempo Perdido.
Segundo um dos seus biográfos, o italiano Pietro Citati, a ambição de Proust era edificar uma obra que fosse a versão literária de uma catedral gótica, não um livro sagrado em seu conteúdo, mas na forma dele, que pudesse abarcar o Todo. Em outras palavras, uma obra total, como a Comédia Humana, de Balzac; Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e O Fausto, de Goethe.
Nos sete livros que formam a Busca (No Caminho de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, No Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Redescoberto), Proust tenta fazer uma síntese de todas as artes. Estão lá referidos a Bíblia, a Odisseia, as Mil e Uma Noites; Ovídio, Dante, Shakespeare; a literatura francesa, os escritores russos, a filosofia. Na pintura, reflexões eruditas que vão de Giotto a Botticelli, de Rembrandt a Vermeer, de Monet a Renoir. Na música, comentários sobre Wagner, Beethoven, Chopin, Debussy.
A Busca… é também um panorama da época de Proust, da Paris da Belle Époque na qual a elite se exibia em trajes luxuosos ora nos cafés elegantes, ora nos boulevards construídos durante a ampla reforma urbanística do barão Haussmannn, ora nos salões das grandes damas da aristocracia ou da alta burguesia. E também da França dividida pelo Affaire Dreyfuss (leia sobre o caso em http://ermiracultura.com.br/2018/01/10/eu-acuso-o-libelo-de-zola/) e, em seguida, arrasada pela Primeira Guerra Mundial.
Para compor a trama da Busca…, Proust evoca as suas próprias reminiscências. Contudo, se a trajetória do Narrador do romance, na sua procura da realização artística, confunde-se com a vida de Proust, essa coincidência não significa que o romance seja uma autobiografia. O passado que o artista traz à tona é um passado metamorfoseado, recriado pela linguagem, atemporal.
O mesmo pode ser dito em relação aos personagens da Busca que possam ser associados a pessoas que Proust de fato conheceu. Na acertada comparação de Citati, o escritor deixa falar seus mortos como Ulisses faz com as almas desmemoriadas do Hades na Odisseia, permitindo que elas tomassem do sangue que ele trouxera como oferenda aos defuntos e assim pudessem recordar do tempo em que viveram sobre a terra. Os mortos de Proust readquirem voz bebendo da memória do autor – transformam-se em criações do espírito, em mitos, em “gotas de luz”. Ao evocar a memória, Proust capta o eterno e, assim, constrói sua própria mitologia.
Sinfonia da memória
Como se disse anteriormente, Marcel Proust gostava de comparar o seu romance a uma catedral gótica, no seu esforço de fazer uma obra que englobasse toda a tradição da cultura ocidental. Mas, conforme o escritor americano Edmund White, também pode-se equiparar a estrutura da Busca… a uma ópera. O prólogo do romance, intitulado Combray, seria, dessa forma, uma grande abertura de uma composição operística, na qual estão anunciados os temas abordados pelo autor no decorrer do romance.
O principal desses temas é o poder da memória involuntária, com sua capacidade de iluminar, num mesmo instante, tanto o passado quanto o presente – no prólogo, ele é evocado no trecho em que, ao provar o mesmo tipo de bolinho (a famosa madeleine) que a sua tia Léonie lhe preparava quando ele era criança, o Narrador da Busca… recorda-se subitamente da infância feliz em Combray. Esse motivo só será plenamente desenvolvido no último volume do romance, O Tempo Redescoberto, como no grand finale de uma ópera, em que todos os instrumentos da orquestra se juntam e iluminam todo o conjunto da obra.
Se a memória é o tema principal, quais são os secundários? O amor, a amizade, o ciúme, as relações sociais, o prazer estético etc. Esses motivos vão e voltam na narrativa, e Proust, ao retomá-los, esmera-se em desenvolvê-los sob um novo ângulo, tal como fez Monet na célebre sequência de 18 telas da fachada da catedral de Rouen, cada uma mostrando uma imagem ligeiramente diversa em razão da alteração da luz solar refletida e captada pelo olhar atento do artista.
Tome-se, como exemplo, a maneira como Proust trata o amor, ou melhor, a impossibilidade de sua concretização. O amor, na Busca…, nunca se realiza, a posse plena do outro é sempre inatingível. É o caso do relacionamento entre Odette e Swann, no episódio Um Amor de Swann. Judeu bem relacionado que frequenta a alta aristocracia, Swann apaixona-se perdidamente por Odette, uma coquete de luxo sustentada pelos amantes abastados. Por esse amor não correspondido, Swann descerá aos infernos.
A paixão de Swann é como um mal sagrado, enviado pelos deuses, contra o qual ele não tem forças para lutar. Esse mal também tem um irmão gêmeo: o ciúme. Segundo Citati, o ciúme em Proust é um sentimento filosófico – ele reacende em Swann a paixão pela verdade, que antes havia inflamado sua juventude. Como um detetive, o personagem investiga os mais ínfimos detalhes da vida da amada, as alterações mais sutis de seu comportamento.
Contudo, no momento em que a dor do abandono atinge o grau mais agudo, quando Swann imagina que o objeto do seu amor está para sempre perdido, todo esse martírio desaparece como que por encanto. O motivo? Swann fica sabendo que Odette não lhe é completamente indiferente, que ela se interessa por ele. A mulher tão desejada, tão endeusada, tão inacessível, de repente está ali ao seu alcance, como qualquer outra. E perde sua magia. Em A Fugitiva, o sentido é inverso. O Narrador só compreende a extensão do seu amor por Albertine quando ela o deixar definitivamente.
Esse movimento de dessacralização do objeto desejado, uma vez que ele é alcançado, não ocorre só no amor. O Narrador admira profundamente os livros de Bergotte, um escritor famoso, e sonha com o dia que terá a chance de conhecê-lo. Quando a ocasião finalmente se apresenta, a decepção não poderia ser maior. Na imaginação do Narrador, Bergotte seria um homem de gestos nobres e de fala erudita, porém se depara com uma figura baixinha, vulgar e fofoqueira. A duquesa de Guermantes também é outra personagem idealizada, um ser quase fantástico. Nos seus devaneios, o Narrador fantasia que uma mulher que descende de uma das famílias aristocráticas mais antigas da França só pode se expressar numa linguagem elevada, digna de reis. Contudo, a duquesa se revela uma pessoa profundamente frívola, preocupada apenas com banalidades e com a própria aparência.
O que pode-se depreender dessa sequência de decepções? Que a felicidade é uma quimera? No último volume da Busca…, O Tempo Redescoberto, o Narrador caminha abatido, a própria imagem da impotência, no pátio dos Guermantes, quando tropeça numa pedra. Nesse momento, ele revê todo o esplendor de Veneza, onde tinha passado uma temporada, e é tomado por um sentimento de alegria arrebatador. Novamente entra em ação a memória involuntária, que já lhe tinha trazido de volta a imagem de sua infância, quando ele saboreava uma madeleine.
É uma revelação, uma espécie de epifania. O Narrador compreende que não era sua vida que tinha sido medíocre, mas a imagem que conservava dela. Sua existência, iluminada pela memória, ganha um sentido, “torna-se uma vocação”, para usar as palavras de Citati. Tudo que ele vira, amara, ouvira, tocara, experimentara tinha um propósito: a construção da sua obra. O eterno está dentro dele. E o mundo novamente se ilumina.
Marcel Proust escreveu a maior parte da sua obra confinado em seu quarto, por meses seguidos. Veja mais sobre esta e outras experiências dessa “literatura do confinamento” nesta edição do programa Dedo de Prosa, do canal Ermira Cultura, com Rosângela Chaves e Rogério Borges: