O cinema de Almodóvar se tornou popular, em boa parte, devido aos personagens extravagantes, histéricos ou, no mínimo, exóticos, como na comédia Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, um de seus primeiros grandes sucessos, cuja profusão de cores, gritos e excentricidades tornou-se uma marca que fascinava o público. Como não voltar ao diretor buscando se inebriar com estes elementos quase sempre tão bem misturados? Infelizmente, como ocorre com toda marca, o espanhol correu o risco de se tornar escravo de sua própria genialidade e rara sensibilidade para criar filmes que emocionassem o público e instigassem a crítica.
Embora a trilha dos excessos combinasse mais com suas enérgicas comédias, Almodóvar sempre andou de mãos dadas com o policial e o drama, mas mesmo aí as hipérboles borbulhavam — deliciosamente, em geral, como em Ata-me ou Volver. Seria cometer o mesmo exagero tão associado ao diretor — sem suas igualmente extremas habilidades — dizer que em seu novo filme, Julieta, ele tentou ser tão comedido a ponto de se perder.
De fato seu filme mais recente, e que está em cartaz em Goiânia no Lumière Bougainville, pode surpreender o público que riu e chorou copiosamente assistindo a experiências marcantes como Tudo sobre Minha Mãe ou A Pele que Habito. Em seu novo longa-metragem, ele abdica do humor negro e da tragicomédia para concentrar-se no mistério e no drama, aqui assumindo quase didaticamente a tragédia grega, o que pode irritar os iniciados, mas não prejudica o andamento do enredo — afinal, mitos são para serem recontados.
A Julieta do título é uma mulher de meia-idade, bonita, de figurino e comportamento sóbrios, elegante, culta, que anda com suavidade pela bela Madri. Ela está prestes a se mudar para outro país com o charmoso namorado quando subitamente altera seus planos. A protagonista acabou de ter um encontro que a reconecta a seu passado, à filha que a abandonou sem explicações pouco depois de completar 18 anos de idade.
Atormentada, Julieta tranca-se em seu apartamento e decide escrever uma relato à jovem Antia, mesmo sem saber se um dia irá revê-la, e a narrativa do filme mergulha num longo flashback. Cerca de 20 anos atrás a protagonista era uma inexperiente professora de literatura grega que se apaixona por um pescador, a quem conhece numa viagem de trem onde ocorre um suicídio. Da paixão ardente nasce Antia, e a família parece caminhar rumo à felicidade, mas, quando alguns anos se passam, fica claro que não é bem isso o que o destino lhes reserva — os signos do prólogo já anunciavam.
O roteiro do longa-metragem é inspirado nos contos Daqui a Pouco, Ocasião e Silêncio, do livro Fugitiva, da canadense Alice Munro, Nobel de Literatura. Temas como culpa, amor, maternidade, maldade, perdão e o peso do destino, ou não, na vida de mulheres comuns dominam as situações que se desenvolvem na narrativa enxuta, mas nem por isso menos atraente do diretor espanhol.
Como em boa parte de sua filmografia, as mulheres fortes são o centro da trama. As atrizes Adriana Ugarte e Emma Suárez se revezam bem no papel da Julieta jovem e madura, respectivamente. Rossy de Palma, que com seu exótico nariz é um nome frequente nos elencos de Almodóvar, interpreta a antiga empregada doméstica do pescador, implicante e possessiva. Diferentemente de suas outras participações com o diretor espanhol, agora ela atua num registro bem menos histriônico, mas ainda assim é um dos poucos alívios cômicos da narrativa.
A direção de arte continua, sim, fazendo-se notar, mas numa toada mais tranquila, ao menos para os padrões da El Deseo, produtora do diretor e de seu irmão, Agustin Almodóvar. Os tons fortes e geométricos do figurino de Julieta, principalmente da jovem, flertam com o kitsch. Apesar de que, com o passar dos anos, as paletas do filme tornam-se menos quentes e gritantes, as cores ainda se destacam na fotografia.
A trilha sonora faz homenagem clara ao mestre do suspense Hitchcock, inspiração frequente do espanhol, que também é reverenciado no início do filme, nas deliciosas cenas do trem. Sexo e morte desafiam os protagonistas, Julieta e o pescador Xoan, perplexos com a visão de um cervo correndo na neve e na noite escura, uma cena que sem dúvida já figura no Olimpo do cinema.
Sem ataques de nervos frenéticos e visualmente fascinantes como estamos acostumados a ver em muitas películas de Almodóvar, Julieta se entrega ao sexo, à paixão, à família, à maternidade e à depressão de maneira sem dúvida dramática. Porém, a construção da personagem transmite bem mais independência do que se convencionou chamar de mulher almodovariana. A vulnerabilidade da protagonista após duas tragédias parece contrastar com a impetuosidade inicial da trama, mas na verdade só completa a complexidade psicológica do roteiro.
A sensação é de que Almodóvar, embora esteja longe de se acomodar e repetir fórmulas de sucesso, também está, como sua protagonista, em busca de si mesmo e não mais disposto a experimentar apenas para provar que precisa se inovar sempre, embora não deixe de ser um risco apostar em um filme como Julieta, que pode não agradar aos fãs. Nada como apreciar um cineasta que vivencia as benesses da maturidade sem a pressão de reprisar o passado nem tampouco desafiá-lo neuroticamente, a menos que seja impelido a isso. A plateia, como sua companheira de viagem, termina a jornada energizada pelo poder dos mitos e do cinema, pronta para mergulhar em novas aventuras de um dos poucos sobreviventes do cinema de autor europeu.
Acho que o filme deveria se chamar Tudo sobre minha filha.