Nos conformes dos costumes e da reza, Ramiro acompanhou com os olhos e o coração aquele tropel de gente, erguendo o mastro em louvor a São João. E Ermira a lhe “fitar com cada vez mais calor”. E Carmo a olhar no derredor, percebendo as fragrâncias que só os causos bem contados podem oferecer. O homem que se fez goiano depois de vir lá de suas Minas Gerais de tantas histórias e atropelos viu que “os caimentos de Ermira estavam ficando cada vez mais declarados” por um peão sem destino, um homem sem pouso, que conquistava a simpatia de cachorros ladradores e a inveja de companheiros de curral. E Carmo, escritor como poucos, “pegou a maginar…”
Desse homem, cujo centenário de nascimento foi comemorado no final de 2015 e os 20 anos de morte lembrados neste primeiro semestre de 2016, acostumou a retina a ver mais fundo e os ouvidos a escutar com calma. Impossível saber qual das histórias que contou pode ser a de melhor proveito na definição de sua personalidade. O homem que estreou na literatura há exatos 50 anos, com o volume de contos Vida Mundo, foi um perseguido por ditaduras e que vibrou uma voz sertanejamente democrática, o que lhe ceifou o sossego de tantos anos. Foi aquele outro de tantas leituras, mas que sabia pôr tento no narrar de gente com carrapicho na roupa e terra nas mãos calosas. Foi ainda um outro mais que estampou suas rugas na TV para compartilhar vivências e dar publicidade a relatos perdidos entre caçadas de onças e alqueirões de terras sem fim, num tempo em que o angico e a aroeira reinavam num cerradão fechado repleto de lendas, valentias e até algumas assombrações.
“Rezaram o terço e saiu uma procissãozinha levando a bandeira muito enfeitada em fita, seguindo por uma estrada capinada e varrida e, de um lado e outro da estrada, fincaram um poder de estacas. No topo de cada estaca meia casca de laranja cheia de azeite com uma luzerna dentro, boiando. As rezas eram cantadas; na frente da procissão, iam os mais velhos; mais atrás, as moças, separadas dos rapazes. Trecho do romance Jurubatuba”
Carmo Bernardes é um nome que muito capiau com quem conversou soube no decorado e que muito doutor nos estudos ainda não reconhece o devido valor. Da ausência de lembrança por parte da maioria, nem mesmo prêmio internacional, elogios de autores de outras paragens, como Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade, e a admiração de críticos especialistas no oficiar de escrever conseguiram lhe livrar. A vida é assim mesmo, meio injusta. Mas também é das injustiças que o homem que se propõe a escrever deve abastecer o seu inventar.
Pois não foi de de traiçoeiros embates que viveram Ramiro e Ermira um caso cheio de quenturas e apartes, em que o homem provou o gosto agridoce da paixão e a mulher demonstrou seus domínios em vãos de onde não se tem notícia ou esperança? Jurubatuba, fazendão que a vista não consegue acompanhar, amplidão de tristezas, opressões e invídias. Ressurreição de um caçador de gatos, de emboscadas com cães sem temor, com espingardas engatilhadas, com sobrevivências improváveis na unha de felinos monstruosos. Jurubatuba romanceada, caçadores de gatos concisos nos contos de se ouvir falar em que se garante a existência, ainda que na imaginação de gente acostumada a moitas de espinheiros, a insetos mordedores, a tabocas de pontiagudos perigos.
A vida por um fio é marca de quem se aventura pelo interior, dos matos e da alma. As touceiras e os sentimentos podem esconder o que sequer suspeitamos que esteja lá. É preciso prudência, mas também carece de ter coragem (opa, aqui já se começa a falar de outro escritor dos sertões e das veredas).
Biografia
1915 – Carmo Bernardes nasce em 2 de dezembro de 1915. | 1921 – Vem morar em Goiás. Passou sua infância e adolescência no meio rural. | 1945 – Deixa o campo e passa a morar em Anápolis, onde foi carpinteiro e protético. | 1959 – Entra para o serviço público, onde desenvolve ainda mais seu poder de escrita. | 1964 – Com o golpe militar, passa a ser perseguido, acusado de ser de esquerda. | 1966 – Lança seu primeiro livro, o volume de contos Vida Mundo. | 1972 – Lança seu primeiro e mais importante romance, Jurubatuba. | 1991 – Ganha, em Cuba, o Prêmio Casa das Américas, com Ressurreição de Um Caçador de Gatos. | 1994 – Publica Jângala: Complexo do Araguaia, onde fica clara sua preocupação ecológica. | 1996 – Morre em Goiânia, aos 80 anos.
Carmo, o advogado e ouvinte de matutos, pescou e caçou cada história que transpôs em contos e crônicas, em romances de um regionalismo apreciável pela fartura de verdades singelas e agudas. Nas vantagens contadas e aumentadas de pescadores de bichos descomunais ou de caçadores que enfrentaram na unha feras sem compaixão, ele erigiu histórias de hipnotizar, numa prosa macia e dona de artimanhas de conquista, de seduções que se deram no agir de criaturas inventadas e na linguagem de gente de carne e osso. Uma linguagem que causa certo desconforto para quem nunca a escutou, mas que segue os passos da correção, nos dicionários e gramáticas. É o domínio do correto por meio de linhas tortas, pelo serpentear de trilheiros e aguadas, de estradas boiadeiras e atalhos invisíveis, de caminhos obscuros e mágicos do sertão. Homem da cultura e do direito, Carmo não se iludia com meros descompassares. Seus personagens pisavam em falso sempre, mas nunca eram abandonados ou condenados. Tinham seu sentir respeitado.
Ramiro era o disparate da natureza e Ermira tinha lindos braços. Na velha e longínqua Jurubatuba, onde quase não se chega no lombo de animal, eles fizeram das plantas do pomar as testemunhas de um amor de coronelismos e olhos vigilantes. E Dingo estava ali, o cachorro de acompanhamento que sempre se chegava ao dono, “banando o rabo, com enjoo de querer cheirar a braguilha de minhas calças.” E também rodeavam naquele mundo de pecados e satisfações culpadas o cavalo Cardão, bicho esperto de galope único, o burro Saudoso, do coice certeiro, sempre procurando o joelho da vítima.
Ramiro, de confusões de amor e de fraquezas desapercebidas, mas tão latentes e fortes. E Ermira, que não lhe saía dos pensamentos, “dormindo ou acordado”. Era Carmo, trazendo para os ermos, as traições de uma Bovary igualmente sem perspectiva, uma Karenina mestre na arte da manipulação, de uma Capitu, só que de certezas em seus deslizes. Era Carmo revigorando a figura de um vaqueiro forte, mas de comovível fragilidade, enredado nas teias de uma paixão que, como um boi marruco bravo, se negava a se submeter a ferrões ou ameaças. É a literatura de um escritor que se consolidou regionalista, mas que não tinha no regional as fronteiras de seu imaginário. Intensidades de uma escrita moldada com zelo, na argila de uma arte.
Obras de Carmo Bernardes
Vida Mundo (contos) – 1966 | Rememórias (crônicas) – 1968 | Rememórias II |(crônicas) – 1969 | Jurubatuba (romance) – 1972 | Reçaga (contos) – 1972 | Areia Branca (contos) – 1976 | Idas e Vindas (causos) – 1977 | Força da Nova (memórias) – 1981 | Nunila (romance) – 1984 | Quarto Crescente (contos) – 1985 | Memórias do Vento (romance) – 1986 | Ressurreição de Um Caçador de Gatos (contos) – 1991 | Santa Rita (romance) – 1993 | Jângala – Complexo do Araguaia (ensaio) – 1994 | Quadra da Cheia (causos) – 1995 | Selva de Bichos e Gente (crônicas) – 2003 (edição póstuma).
E está na arte de Carmo o registro de um Cerrado que ele aprendeu a amar antes de aprender a investigá-lo aos milímetros. Sabia o nome das plantas e que serventia teriam suas cascas rugosas e folhas ásperas. Definia pelo pio a qualidade do passarinho pousado logo ali, cantarolando no abafado do mormaço de agosto. De peixes, então, reconhecia até mesmo o rastro que deixavam na água, em incontáveis pescarias em que tinha em Maria, a mulher com quem dividiu toda uma vida, a companheira nas agruras da clandestinidade ou no sossego de algum lugar nas margens do Cristalino. Rio de bons peixes e de inspirações que faziam o escritor mergulhar no frescor de uma região que soube como poucos traduzir, sem exagerações ou pelejas estéreis.
Carmo, o homem que foi carpinteiro, sabendo esculpir a madeira e as palavras. Na linguagem do sertão, sem arremedos, sem emendas, mas nos retalhos das vidas de tantos que conheceu na roça e nas corrutelas, em que costurou uma linguagem especial.
Ermira era igualmente especial. O fazendão da Jurubatuba, com seus empregados de canga e seus vizinhos modestos e amedrontados, também. Os pousos dos caçadores de gato, e suas estratégias de não espantar a anta gorda ou a paca arisca, se ajuntam nesse universo literário de inegáveis realidades. Carmo andou por esses lugares longínquos e nos deu ciência de sua existência ignorada, assistindo às juras de Ramiro para largar aquela Ermira tão pródiga de malícias, observando aqueles tumultos de cachorros e homens em busca de uma presa cobiçada. Ele concebeu nas terras de um Goiás idílico, de um Brasil profundo, personagens chamados Belamor, espalhando a poesia por um chão de tantas seivas. No trato com a vacada, nas arteirices dos meninos, no banho no riacho para apagar afogueamentos insuportáveis, o imaginário de um mundo de isolamento, de homens fortes e mulheres de feitiço, delineou criaturas que não se enrugaram com o tempo.
Ermira, amor, adeus… Aquela mulher parece ainda estar na Jurubatuba tramando contra o marido coronel, brincando com o amante boiadeiro. E as onças não sumiram das matas. Carmo não deixou.
Parabéns, Rosângela Chaves e Luis Araújo, pela criação do site Ermira, que já é um enorme trunfo para a nossa evolução cultural, com a abertura desta homenagem a Carmo Bernardes.
Desculpem-me pela ausência do lançamento do site, por impossibilidades pessoais de participação.
A cada texto que leio em Ermira, meu contentamento e prazer vão aumentando. Que bom que vocês chegaram. Já não era sem tempo contar com essa riqueza, assim, ao alcance do desejo.
Estou me aproximando de Ermira. Cada dia um pouquinho. Cautelosa diante das surpresas, maravilhada pelo encantamento.
E absorvida completamente por cada palavra que leio e que vai puxando outras e o pensamento, a reflexão, as perguntas…
Não sei se por sorte ou magia vocês conseguiram reunir tanta gente que escreve bem…o resultado é a nossa satisfação.
Parabéns, Rogério, pelo texto sobre o Carmo. Coisa linda!
E se não for pedir muito, publique em Ermira o texto inesquecível sobre o Pedro Páramo de Juan Rulfo.
Salve Ermira! Sucesso!