O “passarinho” chama ali no canto da sala. O som vem de um novo aparelho que veio para revolucionar o cotidiano de uma septuagenária absolutamente alheia à evolução tecnológica. Minha mãe, Denice, 76 anos, é exclusivamente analógica. Na verdade, era.
Há cerca de dois meses, foi presenteada com um simples smartphone. Um bicho de sete cabeças que lhe chegou às mãos. O dragão foi perdendo força e se tornando domável com a ajuda do neto, de 16 anos. Este, sim, digital.
Antes de ter um desses aparelhos que trazem o mundo para perto de nós, dona Denice implicava com os excessos à sua volta. Não gostava quando recebia os familiares e amigos em casa e os percebia todos ali, conectados com o que estava do lado de lá, e não do lado de cá.
“Do alto dos seus 76 anos, dona Denice faz um uso muito saudável da ferramenta que agora leva consigo pelos espaços da casa. Sabe valorizar o que aquilo lhe proporcionou.”
De posse do smartphone, foi apresentada a um tal de WhatsApp – que ela às vezes chama de Facebook. A esse ela já decidiu: não quer ser apresentada de jeito nenhum. Também não quer “entrar na internet, no YouTube”. Ela me explica: “A gente não faz mais nada, minha filha, quando está na internet”.
Mas o WhatsApp… Ah, o WhatsApp… O mensageiro levou minha mãe para perto do irmão, que vive em outra cidade com a família, e cujo abraço demora sentir. As ligações telefônicas também não podiam ser tão frequentes porque o custo sempre a preocupava. Hoje, amanhece e anoitece ouvindo a voz de tio Juca. Retribui com um sonoro “bom dia, irmãozinho!”. Tendo se tornado órfãos quando crianças, minha mãe e seus irmãos não puderam crescer juntos. A oportunidade do abraço, portanto, sempre foi algo muito valioso para eles.
Do alto dos seus 76 anos, dona Denice faz um uso muito saudável da ferramenta que agora leva consigo pelos espaços da casa. Sabe valorizar o que aquilo lhe proporcionou. Não tem preço poder ouvir diariamente a voz do irmão no aplicativo que, com assobio de passarinho, o anuncia. Vê-lo em atividades rotineiras na sua Minas Gerais, em registros feitos pelos sobrinhos e compartilhados no grupo da família, é uma alegria só! Mas, não abre mão do tempo e do espaço compartilhados com os seus: filhos, netos, flores, casa, cachorros, jardim.
“A possibilidade de compartilhamento da vida, a um simples movimento, nos rouba experiências do lado de cá da tela. Gravamos primeiro. Compartilhamos primeiro. Vivemos depois – se der.”
Ao contrário do que ocorre com a geração da minha mãe, a minha geração, em certa medida, perdeu a mão ao se deparar com as inúmeras possibilidades de comunicação e relacionamento: Facebook, Instagram, Twitter, Snapchat e por aí vai. Com eles, estamos perto, estando longe, mas, também, estamos longe, estando perto. Não por causa deles.
A possibilidade de compartilhamento da vida, a um simples movimento, nos rouba experiências do lado de cá da tela. No almoço em família ou entre amigos; no parque; no show; no teatro; no cinema; na viagem dos sonhos: a vida passa pela tela do celular. Gravamos primeiro. Compartilhamos primeiro. Vivemos depois – se der.
Outro dia, numa conversa em um grupo de WhatsApp, uma amiga contava que percebera, alguns anos depois, que perdia muito do encantamento das apresentações do filho na escola diante da urgência em gravar cada cena. Depois, percebeu que o que levava consigo na memória da câmera ou no chip do celular não era suficiente. Queria ter vivido outra experiência. Real.
Foi exatamente isso o que minha mãe entendeu. Agora, quando nos encontramos, o que vale mesmo é o colo, o cafuné, o café, o beijo e o abraço apertado. Os emojis ficam pra depois.
Deire e seus “deliciosos” textos….Fantástica maneira expor a inclusão dos mais experientes à relidade virtual.
Que lindo, Deirinha. Amei “sentir” a introdução de d. Denice ao mundo digital. Você conseguiu mostrar esse novo caminho para ela com muita competência. Parabens, amiga!