Aquele corpo que saltou de uma janela do oitavo andar de um prédio de classe média na Rua Tonelero, em Copacabana, em 29 de outubro de 1983 – como na canção de Chico Buarque –, flutuou no ar como se fosse um pássaro. Deveria ter a capacidade para bater asas e não encontrar seu fim no calçamento logo abaixo, encerrando a vida de uma das poetas mais interessantes e densas que o Brasil produziu no século 20. O corpo era da jovem, bela e paradoxal Ana Cristina César, aos breves e inesquecíveis 31 anos de idade.
A autora carioca, que estudou em Paris e Londres e que foi a fontes valiosas como João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade para consolidar sua poética, é a grande homenageada deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que vai de 29 de junho a 3 de julho. Uma menção merecida a uma poeta que por muito tempo circulou apenas nos chamados circuitos independentes da literatura nacional, mas que, muito tempo após sua morte, caiu no gosto das engrenagens mais comerciais. Prova disso é a excelente edição de sua obra completa, o volume Poética, publicada pela Companhia das Letras em 2013 e quem vem ganhando seguidas reimpressões.
Versos
“Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés para amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?”Soneto, em Inéditos e Dispersos
Ana Cristina César – assim ela assinava seu primeiro trabalho publicado ainda na base do mimeógrafo, o desafiador Cenas de Abril,de 1979 – era uma força delicada. Conseguia construir versos ou uma prosa poética intimista em que mesclava rebeldia e fragilidade. Com estudos em Filosofia e Letras, foi uma tradutora respeitada da obra da neozelandesa Katherine Mansfield. Os ecos de suas leituras, realizadas em ambientes acadêmicos privilegiados como o da PUC do Rio de Janeiro, podiam ser ouvidos em trabalhos que lançavam raízes em sua alma.
Essa alma nunca foi quieta. Suas paixões eram abrasadoras, suas amizades precisavam ser absorventes, sua entrega à poesia era total. Isso fica ainda mais patente em seu segundo livro – assim como o primeiro, de distribuição restrita – chamado Correspondência Completa, também datado de 1979. Nele, a autora muda de assinatura – passa a se designar de Ana Cristina C. – e o formato de sua estética. Se a primeira obra foi curta (22 poemas distribuídos em 30 páginas), a segunda foi brevíssima: um único texto, intitulado My Dear, disposto em seis páginas de fervor. Ali fica patente que, mal começara, Ana Cristina já estava se despedindo. “Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?”, escreve ela no final desta carta poética em que menciona os amigos fraternos, como Heloísa Buarque de Holanda e Armando Freitas Filho.
Essas pessoas foram as grandes responsáveis pela obra de Ana Cristina não cair no ostracismo. Em vida, a autora publicaria ainda Luvas de Pelica (1980) e A Teus Pés (1983), espécie de antologia incompleta de suas obras anteriores e de seus versos mais maduros, que dimensionam ainda mais a perda para a literatura brasileira que significou sua morte. Ela, porém, era uma experimentalista por excelência. Seus baús, seus guardados, suas gavetas abarrotadas foram devidamente organizadas pelos fiéis escudeiros, o que possibilitou a edição, em 1985, do título Inéditos e Dispersos: Poesia/Prosa e, em 2008, da parte restante do acervo, reunida no livro Antigos e Soltos: Poemas e Prosas da Pasta Rosa. Este último trabalho gerou certo debate sobre se Ana Cristina aprovaria ou não a publicação daqueles conteúdos íntimos, em que ela revela, ora em poemas, ora em diários, suas inseguranças criativas, seus demônios secretos, sua forma de ver a vida – ou o seu fim.
Biografia
Ana Cristina César nasceu no dia 2 de junho de 1952, no seio de uma família de classe média. Avessa a rótulos e a zonas de conforto, logo mostrou-se interessada por atividades culturais, como cinema e teatro. Na juventude, ingressou no curso de Letras da PUC do Rio de Janeiro, onde se licenciou, cursando posteriormente um Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No exterior, fez o curso de Teoria e Prática Literária em Tradução, na Universidade de Essex, na Inglaterra, passando ainda uma temporada em Paris. Nesta área, dedicou-se a textos de Katherine Mansfield e Emily Dickinson. Morreu em 29 de outubro de 1983, no Rio.
O volume mais recente lançado pela da Companhia das Letras traz, além de todos esses trabalhos anteriores, outra parte até então inédita, batizada de Visita à Oficina, fruto de uma peneiragem ainda mais criteriosa no acervo da escritora, hoje sob os cuidados do Instituto Moreira Sales, do Rio de Janeiro.
A Flip e o fato de Ana Cristina estar em catálogo são oportunidades valiosas de revisitar esta autora de vida efêmera, mas de uma poesia admirada. Em tempos de redes sociais, as citações de versos e frases da poeta ganharam popularidade, ainda que muitos não façam ideia de quem tenha sido a escritora. Deveríamos todos dedicar uma maior atenção a Ana Cristina César, menos pela tristeza que cerca sua biografia precocemente interrompida e mais pela maestria de suas palavras.
Versos
“As paisagens cansei-me das paisagens
cegá-las com palavras rasurá-las
As paisagens são frutos descabidos
agudos olhos farpas sons à noite
espaço livre para o erro regiões recompostas
por desejo
Paisagens bruscas
descercadas as subidas não poupam
meu silêncio: renominá-las aqui
neste abandono ou aprendê-las diversas e desertas”Vigília II, em Inéditos e Dispersos
Como ñ se encantar com esta poesia intensa e desconcertante. Evoé, poeta!