A plateia do renomado Festival de Sundance, o mais influente do cinema alternativo norte-americano criado pelo ídolo Robert Redford, teve que assistir a algo nada usual no último ano. Entre os concorrentes estava um documentário chamado Tickled, produção do jornalista David Farrier e do diretor Dylan Reeve, em que um universo totalmente desconhecido para a esmagadora maioria do público era descortinado. Na tela, um desfile de homens fortes e descamisados, amarrados pelos pés e pelas mãos, deitados em poltronas e camas, sendo submetidos a sessões de… cócegas!
Sim, você leu direito. Os atores eram vítimas de outros sujeitos que, com plumas, cerdas de escovas de dente ou com as mãos mesmo, faziam seus prisioneiros se contorcerem de tanto rir. O que o documentário mostra, na verdade, são os bastidores de um lucrativo e ascendente mercado de filmes em que diversos fetiches são explorados. O tickled – que nomeia essa forma peculiar de aferir prazer e que significa cócegas em inglês – é apenas um desses comportamentos que saem, agora, da clandestinidade com mais vigor e frequência. E o cinema é um dos responsáveis por isso.

Cena do documentário Tickled: campeonato de cócegas é diversão de milhares de pessoas na internet
O documentário, sucesso em circuitos mais intelectualizados dos Estados Unidos, da Austrália, da Inglaterra e da Nova Zelândia – terra natal do jornalista que fez a investigação de todo o conteúdo – esteve em outros festivais de cinema em língua inglesa, mas não conseguiu uma distribuidora para ser exibido na maior parte do mundo (incluindo o Brasil). Com as facilidades da internet, porém, não é difícil assisti-lo. Aliás, é a internet que incentiva o aumento das produções nesses nichos antes proibidos. Foi acessando a rede que Farrier se interessou pelo assunto.
Em entrevista à rede BBC, o jornalista contou que tudo começou depois de se deparar com uma competição on line de cócegas. Homens dominavam outros e testavam seus limites para aguentar essa provação física. Farrier recorda que se espantou com a dinâmica de poder que se via ali, em que havia um prazer explícito de se dominar outra pessoa. Isso coloca tais campeonatos em uma categoria muito popular nos conteúdos eróticos à disposição na rede mundial de computadores: a de fetiches sexuais, nas suas mais diversas formas, em seus distintos graus de intensidade.
Fantasias e fetiches
Cócegas – Imobilizar uma pessoa em uma cama ou poltrona e quase matá-la de rir. A brincadeira pode parecer só divertida para uns, mas tem uma conotação altamente erótica para outros.
A novidade que Tickled representa talvez seja o fato de que tais comportamentos estão saindo da sombra e encontrando no cinema chamado main stream um caminho mais aberto para se mostrarem. Em 2013, o ator e produtor James Franco, que adora causar espanto com seus projetos pouco ortodoxos, enveredou pelo mundo da maior produtora de vídeos de fetiches dos Estados Unidos, chamada Kink. Sediada na Califórnia, essa empresa alimenta milhares de sites com seus conteúdos para lá de fortes, em que o sadomasoquismo (entre casais héteros e gays), sexo grupal, escatologia e mais uma meia dúzia de fantasias mais pesadas são praticados explicitamente.

Dominatrix Nina Payne, em cena do documentário Kink: submundo descoberto
Kink foi recebido com certa reserva pela crítica e repelido pela maior parte do público que conseguiu alcançar. É preciso, porém, relativizar esse “fracasso”, uma vez que os acessos ao site da produtora, que também vende seus filmes adultos diretamente por downloads, contam-se aos milhões. O documentário, porém, não é só “sacanagem”. Os personagens, que têm nomes como Mestre Madeline e Princesa Donna, revelam como é ganhar a vida atiçando a libido alheia por meio de cordas, correntes, roupas de couro e mordaças.
Fantasias e fetiches
Sadomasoquismo – Sadismo (palavra inspirada nas obras do Marquês de Sade) e Masoquismo (que tem como referência os textos de Leopold Sacher-Masoch) são práticas que, respectivamente, tiram prazer no impingir e no sofrer dores e torturas. Há vários níveis de SM (sigla para a prática), indo do módulo soft (só uma brincadeirinha com algemas de sex shops) ao hard (com clubes especializados que praticam até técnicas de sufocamento e com contratos de submissão). Os adeptos salientam que há cuidados a tomar para que acidentes não aconteçam. Eles afirmam seguir três regras básicas: que a fantasia seja sã, segura e consensual.
Tickled e Kink integram uma tradição da sétima arte, que, de diferentes maneiras, sempre abordou os desejos secretos em seus enredos. Sua longa história está recheada de exemplos, como o sexo anal de O Último Tango em Paris (sabe-se agora que a tomada foi realizada sem o consenso da atriz Maria Schneider) ou as cenas de dominação do clássico do cinema erótico Garganta Profunda.

Cena do clássico A Bela da Tarde, com Catherine Deneuve no auge da beleza: fetiche
Passaram pela telona a figura de Catherine Deneuve amarrada em uma árvore em A Bela da Tarde, a roupa colada de Michele Pfeifer como Mulher-Gato em Batman, o cativeiro sem fim da musa de Joan Crowford em O Que Terá Acontecido a Baby Jane? Homens e mulheres sendo objetos de desejo e domínio no cinema fazem dessa arte uma das que mais rompem barreiras e quebram tabus.

Michelle Pfeiffer na pele, e na roupa de vinil, da Mulher Gato: com chicote e tudo
Com fenômenos como os péssimos (livros e filme) da série Cinquenta Tons, os fetiches passaram a despertar um interesse menos envergonhado. Já os documentários citados nesta matéria exploram, sim, essa onda, mas dão muitos passos além. Os homens amarrados sendo torturados com cócegas, em cenas de explícito teor homoerótico em uma situação produzida para estimular fantasias secretas do público, demonstram o nível dessa ousadia.

Cinquenta Tons de Cinza: trama sadomasoquista leve, sucesso em livro e filme
Kink ainda é mais ousado, mesmo tendo gosto mais duvidoso. Afinal, o limite entre o prazer e a agressão é muito tênue em cenas reais de pessoas dependuradas por cordas apertadas e apanhando de chicotes.
Fantasias e fetiches
Bondage – É uma modalidade do sadomasoquismo, mas que não inclui necessariamente a tortura ou a dor. Seu principal fetichismo é exatamente a imobilização do parceiro, o que pode ocorrer com vários materiais. Há uma verdadeira listagem de possibilidades, que vão da prisão com correntes e presilhas, a técnicas sofisticadas de amarração com cordas, como o shibari oriental (foto), em que o corpo da “vítima” é todo enredado por laços em teia que não a deixam se mexer e até a mantêm pendurada em suportes específicos. Por ser mais tênue, ele é mais visto e referenciado em produções de TV e cinema e até em HQs.

Modelo em shibari: técnica oriental e secular
Essa espécie de submundo, porém, existe e os filmes vêm para revelar isso. Que o digam os dois volumes Ninfomaníaca, do sempre provocador Lars von Trier. Quando conquistam o direito de serem exibidos fora dos nichos em que costumam ser apreciados, há uma outra dimensão em jogo.

Cena de Ninfomaniaca, o filme provocativo de Lars von Trier: todos os desejos revelados
Quem não sabia de tais práticas, passa a conhecê-las, gostando delas ou não. Quem já tinha curiosidade, pode ficar ainda mais interessado, sabendo que há muito mais gente na mesma condição. Quem já era adepto, se sente representado e menos marginalizado. Efeitos de um cinema que leva a sério seu direito de abordar tudo o que acontece no mundo, todas as suas formas de expressão. Mesmo que elas pareçam esquisitas a muitas pessoas.
Fantasias e fetiches
Podolatria – Este é um dos fetiches mais usuais e conhecidos: a fixação por pés. Ele também pode ser transferido para sapatos ou mesmo para atos, como o de pisar em uma pessoa. Sabe-se que há um sentido nisso. Regiões dos pés guardam zonas erógenas que podem ser ativadas quando estimuladas da maneira correta. Um dos embaixadores deste gosto no cinema é o diretor Quentin Tarantino (foto), que inclui podolatria em vários de seus filmes, como Bastardos Inglórios e Kill Bill. Em seu currículo também há várias cenas de bondage, como em Pulp Fiction e Django Livre.
O estímulo da cultura de massa
Se documentários mais explícitos sobre práticas sadomasoquistas, como as abordadas nos documentários Tickled e Kink, ainda são raridades, menções mais subliminares a essas fantasias são abundantes em muitas partes da chamada cultura de massa. Filmes, séries de TV, novelas e até histórias de super-heróis estão repletas delas. Veja alguns exemplos.
Heróis – A série kitsch dos anos 1960 sobre a dupla dinâmica Batman & Robin é talvez o exemplo mais claro dessa influência erotizante nas aventuras dos super-heróis da DC Comics. Em quase todos os episódios, eles terminavam amarrados, presos em alguma armadilha. Mas muitas HQs também trazem essas referências, sobretudo quando o vilão Coringa está em cena. Seus modos sádicos de agir são numerosos. Ele mantém uma relação de tapas e beijos com sua musa Arlequina e não deixa passar a oportunidade de torturar seus inimigos. Em histórias como a do gibi It`s a Wonderful Life (foto) o uso de acessórios eróticos, como a mordaça em Robin, é um recado claro vindo do universo BDSM (sigla para Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo).
Outras HQs – Muitas outras histórias em quadrinhos para adultos também exploram este terreno. Personagens como a sensual Vampirella, uma vampira altamente erótica, demonstram isso. Alguns autores, como o italiano Milo Monara, se especializaram em desenhar aventuras em que belas mulheres são dominadas por seus inimigos. As heroínas mais famosas, como a Mulher Maravilha, também são vítimas frequentes de situações de captura e cativeiro. Isso sem falar no clássico Sin City (foto), que chegou a ir para o cinema, em que o clima noir ajudava a criar cenas de SM. As produções mais explícitas de sadomasoquismo no mundo das histórias em quadrinhos são, porém, os mangás japoneses. Neles, há verdadeiras sessões de tortura, o que gera polêmica em várias partes do mundo.
Séries de TV – A produção não precisa ser voltada para o público adulto para contemplar as referências a fantasias sexuais, sobretudo as que remetem ao universo SM. Séries policiais e mesmo voltadas para plateias jovens estão cheias delas. Um exemplo é o seriado de investigação Criminal Minds (foto 1). Nele, alguns dos psicopatas são adeptos de práticas violentas de dominação e tortura. Nem tudo, porém, é tão pesado. Em séries famosas, cômicas ou dramáticas, como CSI, Law & Order ou Gotham há citações a estas “brincadeiras”. Em outras, como no fenômeno Supernatural (foto 2), os jovens galãs que protagonizam as aventuras contra monstros e demônios aparecem presos e dominados episódio sim, o outro também. Isso, claro, não é gratuito, já que conteúdos são incluídos em enredos a partir de pesquisas de aceitação e desejos por parte da audiência.
Novelas – As produções que tanto caracterizam a TV brasileira não fica de fora desse movimento. As novelas dão pródigos exemplos de que o SM está no meio de nós, ora de forma mais disfarçada, ora de maneira menos sutil. Os enredos de autores como Carlos Lombardi, criador de novelas de sucesso como Quatro por Quatro e Uga-Uga, são recheados de cenas em que beldades femininas e fortões descamisados se encontram em apuros, nas mãos de facínoras caricatos. Pessoas presas, em cenas eróticas que terminam cômica ou tragicamente, também são fáceis de ver. Na novela Viver a Vida (foto), por exemplo, uma vilã esfaqueia seu cúmplice, que está algemado numa cama. Em séries nacionais isso também aparece. Em Dupla Identidade, o psicopata vivido por Bruno Gagliasso amarrava suas vítimas em posições inusuais antes de eliminá-las.
Música – Peças feitas em couro e vinil, lingeries sedutoras e até alguns acessórios mais ousados também podem ser vistos no figurino de artistas de todos os campos. Mulherões, como a cantora e atriz Jennifer Lopez, por exemplo, torneia suas curvas em figurinos que lembram as dominatrix de clubes sadomasoquistas. As cores negras e vermelhas são as preferidas para estimular esse imaginário. Outras são mais diretas, como a cantora Rihanna (foto), que fez um clipe em que é “vítima” de uma dominação por bondage, ou Madonna, pioneira na área ao levar seus fetiches para os palcos.