Domingo, abril de 2017, 16h03. Depois de abrir um pacote de bolacha de morango, algo estranho aconteceu. Aquela guloseima que degusto desde a infância não caiu bem. Minha visão escureceu e quando acordei estava caído no chão. Era a sala da casa da minha mãe. Olhei para cima e bati o olho no velho 3 em 1 CCE, todo prateado. A TV que eu clicava nos botões para mudar os canais estava lá. Era a sala da minha antiga casa nos anos 1980. Aquele sonho absurdo de volta ao passado ficou mais estranho quando olhei para o sofá e me vi, aos 9 anos, deitado, comendo também um pacote de bolacha de morango.
Eu jurava que há alguns minutos eu estava me preparando pra assistir a semifinal do Campeonato Carioca, o jogo entre Flamengo X Botafogo. Já havia ligado o computador e encontrado a partida online, em um site que retransmite tudo. Aí resolvi abrir o pacote da bolacha que nunca deixei de comer e que hoje deve causar efeitos como colesterol alto, açúcar demais no sangue e novos tecidos adiposos. E agora, pelo jeito, alucinações.
“Era a sala da minha antiga casa nos anos 1980. Aquele sonho absurdo de volta ao passado ficou mais estranho quando olhei para o sofá e me vi, aos 9 anos, deitado, comendo também um pacote de bolacha de morango.”
Mas fato é que estou aqui comigo mesmo, um eu menino espalhado no sofá assistindo TV. Uma trip para o passado me fazendo perder o jogo do Flamengo. Sempre sonhei em ter um “De Volta para o futuro” só pra mim, mas não precisava estragar meu futebol de domingo.
– Ou, senta aí, vamos ver o jogo! Quer bolacha?
Olha só, o moleque falava.
– Você sou eu velho, né?
E o moleque ainda era abusado.
Por falar em jogo, naquele momento me lembrei da semifinal do Carioca que queria ver, não estava muito empolgado, mas é meu time de coração, é quase um ritual acompanhar. É uma questão de fé, quer dizer, de sustentar uma fé. Futebol, nossos times, são coisas triviais, mas apaixonantes, causam cegueira como toda crença desprovida de razão. E será que esse jogo passaria ali naquela TV dos anos 80?
– Qual jogo você vai ver aí?
– Eu? O Barça, uai!
– Que?! Não é Flamengo?!
– Não, Flamengo eu até gosto, mas é meu segundo time. Primeiro é o Barça.
– Cadê seu pai? Meu pai?
– Tá lá ouvindo um jogo no rádio, acho que é do Flamengo, ou do Uberlândia, sei lá.
– Hoje é domingo, menino, o Flamengo deve tá jogando. Seu pai… meu pai, assim como eu… como você, deve estar ligado em algum jogo do Mengão, tenho nem dúvida, foi ele quem me apresentou nosso time. E mais, se estamos mesmo nos anos 80, o time do Flamengo é espetacular, só tem craque! Tem o Zico! Por exemplo, eu na sua idade tinha a foto do Adílio colada no guarda-roupa. Eu na sua idade tava tentando bater falta igual ao Zico nas peladas na rua.
“E mais, se estamos mesmo nos anos 80, o time do Flamengo é espetacular, só tem craque! Tem o Zico! Por exemplo, eu na sua idade tinha a foto do Adílio colada no guarda-roupa. Eu na sua idade tava tentando bater falta igual ao Zico nas peladas na rua.”
– Ah, mas acho que o Messi é melhor que o Zico. Não é?
– O quê?! Messi?! Você conhece o Messi? Como assim?
– Claro, hoje o Messi pode fazer o gol número 500 dele jogando pelo Barcelona. E hoje é clássico contra o Real! Jogaço!
– Não tô entendendo nada…
– Eu sei que o Flamengo seria mesmo nosso time de coração, que ele já teve timaços, craques, que disputava campeonatos com outros times brasileiros bons demais também, cheios de craques… mas ou, acabou, bicho.
– Ah é, bicho…?
– É, não dá nem pra comparar os jogos do futebol europeu com os dos times brasileiros. Aqui eles erram toque de bola toda hora, os caras são perebas demais. Os atacantes são ruins, os volantes só sabem dar porrada. Os jogos são sem graça, fica parando toda hora. Muito ruim. E ainda jogam esses campeonatos de Minas, do Rio, dos estados, cheios de times ruins, isso aí não vale nada… Nossa! Olha lá aquela jogada do Iniesta!
O jogo estava bom mesmo e resolvi assistir com ele, quer dizer, comigo. Eu menino estaria me dando uma lição sobre futebol? Jogando na minha cara que eu tenho perdido a chance de me divertir assistindo futebol bem jogado? Eu poderia até desconsiderar, era só um moleque falando bobagens. Mas ele tinha a empolgação com o futebol que eu já tive antes, na idade dele. Mas com times e jogadores diferentes. Gostamos do legal do futebol: o jogo movimentado, bem jogado, jogos emocionantes, mas com qualidade, ídolos em campo, enfim. Esse futebol ainda existia e era capaz de encantar um menino. Naquela viagem no tempo, naquele sonho absurdo, eu só não entendia como aquela partida de 2017 foi parar na TV Philco sem controle remoto daquele moleque. E por quê?
No último minuto do jogo, Messi fez um golaço desempatando, 3 x 2. Era o grande final para uma partidaça. Eu menino e eu velhaco arrepiamos. Era o melhor do futebol, bem ali na nossa frente. O comentário do menino me fez entender o motivo daquele delírio:
– Viu!? Hoje, se você fosse menino, acho que seria torcedor do Barcelona!
“E deixar de ser Mengão? Aquilo já tinha virado um pesadelo.”
E deixar de ser Mengão? Aquilo já tinha virado um pesadelo. Pisquei os olhos e estava de volta, deitado no chão, ao lado do computador. Na tela, o placar marcava a vitória do Flamengo sobre o Botafogo. O time agora disputa a final contra o Fluminense. Serão dois jogos e eu, claro, vou assistir, torcer, xingar e depois que tudo acabar, ganhando ou perdendo, jogando feio ou bonito, vou continuar com a mesma fé no meu time. E não tem Barça, Real, Bayern ou Chelsea que mude isso. O pesadelo de me ver menino esnobando o Flamengo só me fez ter uma certeza: não vai ser agora que vou mudar meu time de coração.
Tendo, ou não tendo o teu dengo
Vou vivendo e vendo o Mengo
O meu “quengo” doendo
Vou torcendo e me arrependo
A “pelada” comendo
Mas paixão não tem remendo
(Flamengo 2×1, Arnoldo Medeiros)