Farei cair uma chuva de rosas sobre o mundo.
Teresa de Lisieux (Santa Terezinha), 1897”
Numa dia quente de maio, caminhando pela Avenida Goiás, no coração de Goiânia, Adelfina de Souza Moura, 83 anos, foi surpreendida por um homem que parou diante dela. Em tempos sombrios em que um simples passeio em meio ao verde exige redobrada atenção, imagine ali, na aridez do centro urbano, onde todos os sentidos precisam estar em alerta? Assustada e cercada por transeuntes, a aposentada não teve nenhuma outra opção a não ser encarar aquela figura que, do nada, lhe oferecia uma rosa. Assim? Por quê? “Estou sendo solidário a você para que você seja solidário com outra pessoa”, ele disse. A angústia do caminhar solitário entre estranhos, onerado pelos anos, deu lugar a um sorriso iluminado. “Que bom, meu rapaz, venha aqui, me dê um abraço. Você me deu uma rosa com amor!”
Esta foi uma das 15 pequenas histórias que Ermira acompanhou naquele dia, protagonizadas pelo servidor público Rômulo Vaz, 50 anos, estudante de teatro e transformista. Desde janeiro, em um sábado por mês, ele distribui rosas pelo centro de Goiânia a pessoas que nunca viu, escolhidas aleatoriamente, principalmente mulheres.
Rômulo Vaz é uma pessoa inquieta. De manhã cumpre jornada no serviço público, à tarde e à noite estuda teatro ou se “monta” para os espetáculos do Cabaré das Divas, numa boate da cidade, herança do Jú Onze e 24, atração irreverente que reuniu dos anos 1990 a 2006 drag queens, transformistas e dançarinos uma vez por semana no Centro Cultural Martim Cererê, sob o comando do ator e diretor Júlio Vilela. O espetáculo ficou em cartaz até a morte de seu idealizador. Além de integrar o Conselho Municipal de Saúde, os finais de semana de Rômulo dedica parte de seu descanso às aulas de teatro ministradas gratuitamente em uma ONG da região Noroeste de Goiânia.
Mas ele queria mais. “Queria fazer a diferença”, diz Rômulo. Devoto de Santa Terezinha, o servidor público decidiu que num mundo de tantos embates e de pouca amabilidade no cotidiano, surpreender alguém com uma rosa poderia transformar o dia dessa pessoa. “É um gesto de solidariedade”, explica. A proposta foi apresentada à amiga Selma Borges, há 25 anos proprietária da Petúnia Floricultura, na Avenida Tocantins, centro da capital. “Eu adorei a ideia. Muitas pessoas chegam aqui e contam que nunca receberam uma rosa. A rosa doada por ele pode, sim, fazer diferença na vida de alguém. Essa pessoa vai se sentir amada e feliz”, reforça a empresária.
Selma não só elogiou a iniciativa como também topou doar as rosas a Rômulo uma vez por semana. “Confesso que levei um susto. Não esperava que ela se tornasse uma parceira”. A partir de então, mensalmente Rômulo deixa a floricultura e percorre alguns quarteirões do Centro surpreendendo desconhecidos com uma rosa. A auxiliar de dentista Josiene da Penha Souza, 28 anos, estava distraída quando o servidor público a abordou. “Achei maravilhoso!”, ela comentou, com um sorriso. “O mundo seria bem melhor se existissem mais pessoas como ele”. Desempregada, a auxiliar de serviços gerais Marlene Rodrigues descobriu naquela rosa que não era apenas mais uma na multidão. “Levei um susto. Não estava esperando. Que coisa boa!”
O português Américo Pereira, em seu estudo A importância da Rosa, sobre a obra O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, explica esse movimento de Rômulo ao instituir a rosa como instrumento de relação humana: “Trata-se da metáfora do retorno à essencial substância da mesma humana vida, impossível de ser vivida atomicamente, num isolamento bestializante, que faz de cada ser humano um monstro de humanidade, reduzido a uma qualquer maníaca função ou a um qualquer maníaco interesse alienador de sua mesma funda humanidade”.
Um dos gestos mais significativos daquele dia em que Ermira acompanhou Rômulo em sua maratona de solidariedade veio da faxineira, ainda na ativa, Maria Helena, 70 anos. “A ideia é excelente. Uma rosa muda muito porque representa o amor que a gente tem pelas pessoas.” Mãe de um casal de filhos, ela ficou feliz com o presente, mas surpreendeu mais ainda Rômulo com a retribuição. “Venha aqui. Deixa eu te dar um abraço de mãe.”
Em busca da herança genética
A reação espontânea da faxineira Maria Helena foi uma das muitas que Rômulo Vaz tem presenciado desde que colocou em prática o projeto, entretanto aquela foi significativa. “Quando idealizei esse projeto, pensei que poderia contribuir para um mundo melhor, transformar o dia de alguém, mas depois fiquei pensando se um dia eu não entregaria uma rosa para minha mãe biológica”, afirma. “Eu tenho essa fantasia de encontrá-la”, revela. Adotado ainda recém-nascido, ele tem convicção de que, apesar do amor e da dedicação que recebeu dos pais adotivos ao longo de sua vida, essa é uma lacuna que ainda não conseguiu preencher. “Trago esse questionamento desde minha adolescência.”
O assunto, segundo ele, nunca foi bem-vindo em família, mas o pouco que soube foi o suficiente para as muitas perguntas ainda não respondidas. “O que sei é que minha mãe adotiva tinha perdido um bebê de quatro meses antes de eu surgir. Ela e meu pai moravam em Campinas e um carro teria parado diante da casa deles de madrugada e me abandonado. Antes, porém, alguém bateu na porta e desapareceu me deixando ali.” Rômulo nunca se sentiu menos amado pela mãe adotiva, que também gerou um filho. Mas o vazio de não saber sua origem genética sempre o perseguiu. “Eu insisti tanto ao longo dos anos que minha mãe adotiva acabou me contando que fui gerado por uma lavadeira, mas apenas isso. E, antes de meu pai morrer, ele disse que minha mãe e minha avó sabiam da verdade. Depois, ela me proibiu de tocar no assunto.”
Em vários momentos, Rômulo buscou notícias da mãe de sangue contando sua história em mensagens enviadas a emissoras de rádio e de TV. Nunca obteve resposta. “Adoção é como um quebra-cabeça. Desde muito cedo as muitas peças devem ser legitimadas para a criança que poderá ter suas expectativas reduzidas, caso contrário haverá lacunas na vida adulta. Acredito que, nesse caso, quando Rômulo cria um projeto para distribuir rosas de forma aleatória, ele tenta preencher um vazio”, explica a psicoterapeuta Inês Penna, especialista em casos de família. O tempo não trabalha a favor do servidor público que, aos 50 anos, a cada dia vê reduzida a chance de conhecer a mãe biológica.
Direito passou a ser assegurado
A Lei Nacional de Adoção (12.010/09) instituiu ao menor o direito de conhecer sua origem biológica, passando a fazer parte do artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (8.069/90). Com essas legislações, o filho adotivo pode ter acesso irrestrito aos detalhes do seu processo de adoção desde que haja determinação do Juizado da Infância e da Juventude, que designa um psicólogo e um advogado para acompanhar o caso quando se tratar de menor de idade. A revelação pode ser feita antes ou após o adotado completar 18 anos.
No trabalho O Direito do Adotado à Identidade Biológica, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a bacharel em Direito Samara de Aguiar Cecatto ressalta que esse é um direito personalíssimo do adotado. “Para algumas pessoas na condição de filhos adotados, a boa relação com a família que os acolheu não é suficiente para a plenitude da sua identificação pessoal. E é nessa perspectiva, de concretizar a sua identidade a fim de descobrir a sua realidade singular, que o filho adotivo desperta para a procura de uma individualidade que o distinga das demais.”
Essencial substância da vida
Outros dramas pessoais envolveriam Rômulo com o avançar dos anos. Um acidente na divisa de Goiás com Minas Gerais durante uma viagem a São Paulo de Fusca com a mãe e a avó atrofiou seu braço esquerdo quando ele tinha apenas 6 anos de idade. Cerca de dois anos depois foi abusado por vizinhos. Não muito tempo depois viu o pai abandonar a mãe para viver com a doméstica da família. Mais tarde graduou-se em Biomedicina e Filosofia e, por se achar “muito religioso”, acreditou que poderia resolver as pendências emocionais num seminário católico onde permaneceu de 1997 a 2002. “Eu sofri muito preconceito lá dentro”, diz.
A batina obrigatória não escondia a sua homossexualidade já admitida e abandonar o projeto da vida religiosa e encarar a família foi outro drama. Ele foi expulso de casa ao comunicar à mãe e ao irmão que tinha encontrado um companheiro. A certeza da escolha, no entanto, não o jogou no limbo. Depois de resolver em parte as pendências familiares, passou a investir em projetos pessoais que o fizessem feliz.
A gari aposentada Maria Luiza da Silva, 73 anos, só tem a agradecer. “Esta foi a primeira rosa que ganhei na vida”, contou ela a Rômulo naquele dia de maio.
Estou emocionada, querida Malu. Feliz por ter te encontrado na estrada da vida. Vc faz a diferença na vida das pessoas. Parabéns !
Linda e comovente história de vida.Texto perfeito, da admirada e competente jornalista Malú Longo.Parabéns!
Extraordinário ❣️❣️❣️❣️❗️
Precisamos de mais pessoas como Romulo Vaz , que se derramam em forma de carinho e acolhimento ……
Ele é a própria ##########.
Que tal aprendermos com Romulo Vaz???!!!!
Maravilhoso o gesto. Adorei ♡