“Era apenas um emprego como qualquer outro.” Esta frase é uma das que podem resumir bem um depoimento impressionante. As numerosas rugas no rosto não deixavam dúvidas sobre a idade avançada e as vivências dolorosas de Brunhilde Pomsel, dona de mais de um século de existência e de uma história de vida maculada. “Eu não tinha ideia do que era discutido ali. Não poderia ter.” Talvez seja verdade o que diz a mulher que foi secretária de um dos mais sanguinários líderes nazistas, o mestre da propaganda de Hitler. Durante a Segunda Guerra Mundial, esta senhora, então uma jovem de classe média, secretariou Joseph Goebbels. E após 70 anos de silêncio, ela quis falar.
O resultado dessa rememoração é um documentário chamado Uma Vida Alemã e um livro de mesmo nome. A obra, ainda inédita no Brasil, já foi publicada em Portugal e é aterrador em vários sentidos. O jornalista Thore D. Hansen foi o responsável por trazer à tona essa história cheia de culpa no presente e alienação no passado. Brunhilde Pomsel, que morreu no início de 2017, aos 106 anos de idade, pouco depois de abrir seu baú de recordações, traça um retrato inquietador do que levou a Alemanha a acreditar na demagogia nazista e fechar os olhos aos genocídios promovidos entre 1933 e 1945 em um dos países mais avançados do mundo.
Os argumentos de Brunhilde auxiliam-nos a entender um pouco a cegueira – compulsória ou não – daqueles tempos sombrios. E é assustador, como nos alerta Thore Hansen em texto que fecha a edição de Uma Vida Alemã, pensar que aqueles elementos não estão totalmente superados. Muitos deles nos soam familiares. As mentiras repetidas mil vezes que se transformam em verdades, um dos métodos mais conhecidos de Goebbels em sua conquista de corações e almas, estão de volta mais fortes do que nunca com as chamadas fake news. O pior, porém, é a ausência de empatia, o fato de considerarmos perseguições como algo normal. É aí que entra a mentalidade de Brunhilde.
Moradora de um bairro pacato de Berlim, a ex-secretária se via distante dos combates em que a Alemanha estava envolvida, sobretudo após o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Funcionária pública dedicada e uma estenógrafa competente, ela foi designada para servir no todo-poderoso Ministério da Propaganda do regime nazista, na antessala de um dos maiores nomes do regime. Mesmo tão perto do local onde tantas tragédias foram arquitetadas, ela não sabia do que ali era discutido. “Goebbels era um homem normal”, diz ela, sem imaginar que uma pessoa tão distinta, educada, culta fosse capaz de fazer o que fez.
“Sobre como assistiu a um discurso inflamado de Joseph Goebbels “Nenhum ator poderia fazer melhor, a transformação de um homem civilizado, uma pessoa séria em um incendiário. No escritório ele era uma espécie de homem elegante, e depois eu o vi lá como um anão furioso – você não pode imaginar um contraste tão grande.””
Brunhilde, obviamente, não estava sozinha nesse estado de ignorância. Uma ignorância, porém, cultivada com o ato de voltar o rosto para o outro lado. Em seu depoimento, ela admite que tinha muitos conhecidos judeus – o seu primeiro patrão, por exemplo, dono de uma loja –, mas que o destino dessas pessoas “não lhe interessavam”. Essa falta de “interesse” aparece o tempo todo nas palavras daquela senhora, que experimentou na velhice um incontornável sentimento de culpa. Sua melhor amiga, por exemplo, uma aspirante a escritora judia, sumiu de sua convivência e ela não sabia onde havia parado. E não procurou saber. Só muitos anos depois veio entender o que ocorreu.
Eva Löwenthal morava nas vizinhanças da casa da família de Brunhilde, mas tinha um nível de vida mais modesto que foi piorando à medida que as restrições aos judeus eram implementadas na Alemanha. Isso não passava despercebido por Brunhilde, tanto que ela conta as vezes que precisou pagar refeições ou doar roupas para a amiga. Seu desaparecimento repentino é visto com estranha naturalidade pela ex-secretária, que, crédula nas versões oficiais, achou que aquela menina pobre havia viajado. Sim, ela viajou, diretamente para um campo de concentração, onde foi exterminada em 1943, a exemplo de toda a sua família. Brunhilde mostra-se chocada com essa revelação.
Essa dubiedade deixa tudo ainda mais complexo e perturbador no depoimento da ex-assessora de Goebbels. “Sei que ninguém acredita em nós hoje em dia, as pessoas acham que sabíamos de tudo. Nós não sabíamos nada, tudo isso era mantido em segredo”, assegura Brunhilde quando perguntada sobre a Solução Final que os nazistas destinaram aos judeus. Mas ao mesmo tempo ela reconhece que se sentiu muito incomodada, por exemplo, com a Noite dos Cristais – ou Noite dos Vidros Quebrados –, em novembro de 1938, quando milícias nazistas saquearam, incendiaram e destruíram lojas de judeus em várias cidades, violentando e assassinando vários de seus proprietários.
“Sobre a versão oficial nazista de que os judeus que desapareciam eram enviados para territórios a serem repovoados e não para campos de concentração “Nós acreditávamos – nós engolíamos aquilo – aquilo nos parecia inteiramente plausível.””
Em outro momento, Brunhilde conta como teve nas mãos documentos, registrados como secretos, que teriam informações sobre os campos de concentração ou a respeito da perseguição aos judeus. Ela assinala que não quis abrir a pasta porque era uma funcionária exemplar e fazer aquilo “seria errado”. Esse trecho de seu depoimento nos faz lembrar do julgamento em Israel do criminoso nazista Adolf Eichmann. No livro Eichmann em Jerusalém, a filósofa Hannah Arendt, que cobriu o júri para a revista norte-americana The New Yorker, mostra como o réu dizia que apenas “estava cumprindo ordens, dentro da legalidade”, ao enviar milhões de pessoas para a morte. Daí ela cunha o conceito de Banalidade do Mal.
Essa incapacidade de julgar o que é certo ou errado mesmo sob uma ordem superior, que Arendt identificou tão bem em Eichmann, é perceptível nas frases de Brunhilde, ainda que ela tenha tido tempo de se arrepender por tanta omissão. Antes de ir para o Ministério da Propaganda, ela atuou em uma estação de rádio. Essa emissora sentiu os efeitos da guerra e das intervenções em seu conteúdo. Depois, os repórteres judeus foram demitidos e os alemães enviados para o front. A revogação da independência jornalística e, por fim, a eliminação de seus antigos colegas de trabalho não são suficientes para acender uma fagulha sequer de comoção ou indignação em Brunhilde.
Interessante é notar a condescendência como ela ainda se referia, tantos anos depois e já de pleno conhecimento dos horrores praticados por seus ex-patrões, à família Goebbels. Ela descreve um jantar em que se sentou ao lado do ministro de Hitler e até trocou palavras afáveis com ele como se isso fosse motivo para certo orgulho. As menções também são elogiosas a Magda Goebbels, esposa do líder nazista, e a seus filhos. Ela relata que uma vez, após sua casa ser bombardeada em Berlim, chegou ao trabalho com roupas rasgadas. Ganhou de presente da mulher de Goebbels uma vestido de luxo. Novamente ela salienta o fato como se fosse o mais importante a dizer sobre eles.
Esse comportamento não se verifica quanto aos judeus mortos pelos nazistas. Brunhilde parece ter mantido até o fim um distanciamento espiritual com as vítimas. Em diversos momentos, também se considera uma das prejudicadas. Após o suicídio de Hitler e o fim da Segunda Guerra na Europa, ela foi capturada nos destroços do Ministério da Propaganda, bem ao lado do bunker onde o líder maior do nazismo meteu uma bala na cabeça e Goebbels matou toda a família e se matou com doses de veneno. Identificada e depois de não ter aproveitado uma oportunidade de fuga, a ex-secretária foi levada a um campo de prisioneiros russo, onde ficou por cinco anos detida.
Apenas quando saiu da prisão, segundo a própria Brunhilde, ela começou a saber o que havia acontecido na Alemanha naqueles 12 anos de pesadelo nazista. Não é de se duvidar que isso de fato tenha acontecido. São milhares de alemães que deixaram depoimentos parecidos. O país parece ter vivido uma espécie de transe coletivo, em que a noção de certo e errado foi revogada. Um ódio descomunal brotou no seio daquela sociedade e a vontade de vingança pelas humilhações impingidas ao final da Primeira Guerra Mundial foi o pretexto para o revigoramento de rancores ancestrais, preconceitos arraigados e instintos primitivos contra quem não se tolerava.
“Sobre a razão de ter entrado no partido nazista e de não ter contestado seus preceitos “Eu poderia me abrir às acusações de que eu não estava interessada em política, mas a verdade é que o idealismo da juventude poderia facilmente ter levado você a ter seu pescoço quebrado.””
É difícil ler as recordações de Brunhilde Pomsel sem alternar revolta e piedade. É uma mulher culpada que fala, mas seu remorso soa, em certas ocasiões, artificial. Não temos a certeza de que tudo aquilo não se repetiria caso as condições para tanto fossem as mesmas de 70 anos atrás. Surge, assim, outro sentimento: o temor. Em 2017, completaram-se os 30 anos da morte do escritor italiano Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz e que se dedicou a lembrar as atrocidades sofridas em livros testemunhais como É Isto Um Homem? e Afogados e Sobreviventes. Ele gostava de dizer que toda atenção é pouca. Em sua opinião, ainda somos capazes, sim, de repetir o nazismo.
Excelente texto Rogério. Temática importante para nosso tempo, especialmente para a realidade brasileira.