(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Escudo
pendido sobre o forjado escudo de Hefesto
por mando de Tétis, a irada deusa
aguarda o mortal sob os emblemas
de brigas, pirâmides de outras crenças
horto de outras frutas, entrelaces de insetos
conhecidos e outras pragas extintas
protozoários a roer pais de forte estirpe
estudantes arremessados de um meio-fio
e pensa na imortalidade com os reveses
da impotência, tivesse o escrínio de impedir
a extirpação do Universo, tivesse a força
de abafar o sopro nos lábios do Homem
ainda que por prêmio vencesse na biga de ouro
com as éguas aveludadas em verdes campos
hordas de bravos guerreiros empurradas
para as lamas de Escamandro, reabilitado rio
lentamente, contínuo combater as lêndeas
de mais um dos cem mil crepúsculos
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[2]
Fascínio
tenho de pensar em meus atos todas as manhãs
as pronúncias de admirar e de ser admirado
rir em Quito, M’rirt, Ponta de Campina
deve ser admirável ser desejado pelo alquimista
aí serei a perfeição do capacete, do piolet, do camalot
da mochila, do gri-gri e do crampon
também ser admirado pelo pescador
pois saberei que sou o bom barco
a boa corda, a rede abraçada ao tubarão-martelo-liso
também ser admirado pela mãe
pois aí eu me saberei a polpuda laranja
o submerso figo, o filho
esqueça-me a pronúncia do fascista
ai teria de ser o bom campo de extermínio
para a mãe e o alquimista. teria de ser
a corda para a forca do pescador e de mais mães
admire-me o melro no fascínio do canto
e serei a semente de capim para a devora
admirem-me em círculos os urubus
e serão úteis numa ceia os meus olhos
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[3]
Enquanto apodrece
Se te enclausuras em teu quarto
deixas o vazio num café
Se te encontras entre as tendas
não te sigo quando vou pela ravina
Se te segredas na luz de um cinema,
não te expões na superfície do pântano
Se com o acompanhante ris ao virar a esquina,
não apalpamos os cachos numa videira
Enquanto orientas o motorneiro,
o touro roça o ventre enquanto é sol
Enquanto é claridade em teu dorso
o estrangeiro aguarda no entreposto
Perdido consolo por não plantarmos
a semente em covas íntimas da gentil genitália
Enquanto não resgato dois versos
de preencher a exaustão do vazio de uma linha
Ensinas o vazio numa fronteira,
no entanto o diálogo se retrai num cárcere
Enquanto fascinas no orvalho da praça,
na beira da isbá gravitam ladrões do fogo
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[4]
Biografia do abacaxi
Não é um inimigo, mas também
não se apresenta com olhos róseos
e anuências de facilidades às apalpadelas.
Se há sensualidade é em esgrimir
ácido com a língua.
Nasce entre espetáculos explosivos
em salvaguarda do crescimento,
espadas cortantes cercam a floração
de expectante vermelho apoiado
em concha branca, onde reserva água,
atrai insetos, tessitura de aranha
e meus olhos.
Mas também tudo é explosivo
e na defensiva se a ameaça
ronda em constante gume.
Desenha-se por força
de poliedro oblongo
de expectantes raios de ranhuras,
numa composição firmada
em contrato com algum multiplicador
de facetas, espelhamento
de um caleidoscópio raivoso de luz.
Não copia a formação em olhar-se,
talvez multiplicação dos dejetos
da luz do Sol a secar a crosta
para a possibilidade do acúmulo líquido.
Nos quintais é aguado e solitário,
silencioso solilóquio com o extremo
de ampliar bastões de folhagem.
A majestade está em apresentar-se
esventrado sol espectral a cada corte,
porejando atraente ranho.
Quem compreende a explosão de rosáceas
salivará ao contato de ácidas linhas de cristais.
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[5]
Refém da palavra
nasci para ser refém da palavra
posto a fraude para que ela me defina,
grosso, impaciente, e também me acuse
entre dúvidas do que vem para
jogar petição ou ruído em meus beirais
jogos de ruídos nos ouvidos são banais
como as mãos a deslizarem até a coceira
o ruído amesquinha a palavra
e dele também sou fugitivo
e ele me persegue e alcança,
notificação em locais improváveis
com a liberação de minhas atividades
seguir pela beira de calçadas
onde formigueiros não conseguem durar
até o próximo julgamento
entendia-me fora dos processos
nas definições que eu mesmo deliberei
rolamentos se juntam às conexões
das árvores e não geram nenhuma fricção
ou movimento, por mais que eu pare
e incentive-os e os retorça
não acreditar nunca que são as fezes de um cão
entre as poucas touças
as futuras mãos vão deslizar até os anais
e roçarão as sujeiras incrustadas
surgem alguns versos que poderiam
valorizar a ordem da cidade e são iguais
aos ruídos das decisões
que não contêm nenhum heroísmo
as palavras vivem do que digo
e desejo dar-lhes de significado
outras fricções em rolamentos
de justos encaixes, touças
para esconder fezes
e geramos autos e liminares
depois de convocado, surgem
as interpretações do lixo
antenas de insetos, asas e palavras
nalguma compostagem de decisões
se em mim mesmo apodreço,
se apodrecem as formigas mortas,
a relva onde surge a nova trilha
como refém da palavra, ela me impõe
a condenação para a chave de ouro
mas quem disse que estou preocupado
em cumprir suas ordenações?
o verso isolado lança a convocatória
e, refém, me rendo indo ao seu distrito
enquanto caminho, um homem
manchado de toda tinta de sujeira,
talvez descrente, defeca junto ao tribunal
não compreendo se o verso
que me convoca é meu, da palavra
ou de quem defeca ao pé de uma cerca:
antena-te às besouras do meu lixo
Perfil
Salomão Sousa é natural de Silvânia (19/9/1952) e reside em Brasília desde 1971. É formado em Jornalismo, que exerce como funcionário público do Ministério da Fazenda na área de assessoramento parlamentar. Começou aos 15 anos, ainda em Silvânia, a escrever poemas. Na década de 1970, participou parcialmente do movimento Poesia Marginal com Esbarros, entre outros pequenos folhetos. Nesta época, assim Jorge Amado autografou num dos livros que lhe enviou: “Um poeta de primeira ordem — original e humano, sensível e consciente. Poesia que não é cera, é chama.” Está inserido na Antologia da Nova Poesia Brasileira (1992), de Olga Savary, e na A Poesia Goiana do Século XX, de Assis Brasil. Organizou em 2008 a antologia Deste Planalto Central — Poetas de Brasília, como parte da I Bienal Internacional de Poesia da Biblioteca Nacional de Brasília. A UBE, Seção de Goiás, concedeu-lhe, em 2011, o Troféu Tiokô. Participou como representante da língua portuguesa, em 2014, do VI Festival las Lenguas de América/Carlos Montemayor, do Centro Cultural Universitário, da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Atualmente, é da diretoria da Associação Nacional de Escritores. Mantém os blogs www.safraquebrada.blogspot.com, www.poesiagoiana.blogspot.com e www.salomaosousa.blogspot.com. A escritora Sônia Elizabeth Nascimento Costa considera Salomão Sousa um “poeta genuíno, dos mais criativos e modernos na linguagem atual”. Após a leitura de Vagem de Vidro, assim ela se expressou nas redes sociais: “tem um poder tão magnífico e estrutural de criação, que nos deixa verdadeiramente embriagados de sua poesia. Não são versos fáceis de se ler, não existe um entreguismo de linguagem pronto e acabado, é todo um trabalho artesanal de tessitura com fios de seda e prata, alinhavados de puro ouro. É poesia que quase beira o cru (numa interpretação mais embrionária), mas que converge em tudo para o SER, a decifração da vida humana em todos os seus enigmas e fatos cotidianos, onde traduz tudo isso no esquema apocalíptico de transcrever o existente no que pode advir, sem hesitar e sem retroceder.” A obra poética de Salomão Sousa mereceu abordagem crítica de diversos autores, tais como Ronaldo Cagiano, Hildeberto Barbosa Filho, Adalberto Queiroz, Goiamérico Felício, Ronaldo Costa Fernandes, José Fernandes, Whisner Fraga, Geraldo Lima, entre outros. Publicou os seguintes livros: A Moenda dos Dias (1979), A Moenda dos Dias/O Susto de Viver, (1980), Falo (1986), Criação de Lodo (1993), Caderno de Desapontamentos (1994), Chuço (zine xerocopiado, 19 números até 1999), Estoque de Relâmpagos (2002), Ruínas ao Sol (2006), Safra Quebrada (poesia reunida, incluindo dois inéditos, 2007), Momento Crítico (reunião de textos críticos, crônicas e aforismos, 2008), Vagem de Vidro (2013), Descolagem (antologia de poesia, 2016), Despegues y Ressonancias (plaquete de poesia, 2017). Os poemas estampados nesta coluna são dos livros Desmanche I, Desmanche II e Biografia.