De Zurique – No momento em que escrevo este texto, estou tomado por um inegável sentimento de inveja. Uma inveja absurda dos suíços e das pessoas de todas as partes do mundo que vivem nas belas e bem cuidadas cidades deste pequeno país mais famoso por suas contas secretas em bancos de segurança absoluta, por seus chocolates deliciosos, seus relógios pontualíssimos e caríssimos e seu gado peludo. Pois esta nação encravada na Europa deveria ser associada também aos seus rios.
Algumas das principais cidades da nação estão nas margens de imensos lagos e são agraciadas com centenas de fontes de água, que jorram generosas. Jorram porque suas nascentes estão preservadas, não há gente abusando deste recurso natural tão essencial para a vida e até os ricaços, que no Brasil se acostumaram a fazer represas irregulares e clubes que poluem justamente o que exploram, têm consciência de que a água não é só deles. A água é de todos e todos sabem aproveitá-la muito bem.
Em viagem pela Suíça, fui lembrado, mais uma vez, que a relação dos europeus com seus rios e lagos é muito mais saudável que a dos brasileiros, por exemplo. E olha que nós temos verdadeiros colossos, como o Amazonas, o São Francisco, o Paraná, o Araguaia, o Xingu, o Tocantins, o Rio Grande. Mas parecemos ter uma autodestrutiva tendência de não nos importarmos com eles, descuidar de suas águas, de suas matas ciliares, das minas que os alimentam. E vamos matando todos eles ao mesmo tempo.
Tendo essa perspectiva, chega a ser chocante encontrar no centro de Zurique, a maior cidade suíça e sua capital econômica, milhares de banhistas, no fim de tarde de um dia útil, tomando banho no rio Limmat, que corta, caudaloso, o centro urbano com cerca de 400 mil habitantes. Seu volume, alimentado como uma espécie de vertedouro do grande lago Zürichsee, é generoso, com uma corrente apressada, mas não furiosa. Não muito profundo na maior parte do tempo, o rio convida todos a se banhar nele.
O convite fica praticamente irresistível no intenso verão europeu, quando as temperaturas, mesmo em países de clima frio como a Suíça, ultrapassam quase todos os dias os 35 graus. Os dias começam cedinho, pouco depois das 6h da manhã, e a luz do sol brilha até quase 10 da noite. Nos períodos do tão temido canicule – termo que designa no continente europeu o período de dias em que o calor é quase insuportável e até maléfico à saúde –, o rio é uma indicação mais do que recomendável.
Mas não seria possível nadar no rio que atravessa Zurique de cima a baixo se suas águas não fossem cristalinas. Por isso, famílias inteiras, munidas de boias de todos os modelos, de pequenos botes infláveis ou na cara e na coragem, se jogam em sua corrente, levando-as por quilômetros adiante, sem perigos, numa brincadeira contagiante e refrescante. Em Munique, há clubes públicos na beira do rio para esse tipo de lazer, com piscinas até para crianças. E eles ficam lotados.
A água corrente deixa esses ambientes ainda mais vantajosos, já que nem a grande quantidade de pessoas consegue sujar a água, em renovação a cada segundo. Não se vê nada suspeito boiando, como acontece em piscinas públicas e praias do Brasil. E todo mundo compartilha espaço, sem maiores dificuldades, deitando-se na grama nas margens do rio, em pequenas plataformas, aos pés de pontes que se transformam em verdadeiros estacionamentos de bicicletas.
Sim, é de dar inveja. Temos rios tão ou mais bonitos, mas não podemos usá-los porque eles se transformaram em valas de esgoto a céu aberto. Não se pode mergulhar neles, não se consegue ver peixes em suas águas – nas águas de Zurique, há pelos menos dez espécies diferentes. O mesmo ocorre no grande lago de Genebra e no rio que dele sai, o Ródano. Isso é resultado de um esforço conjunto. O poder público mantém a ordem e a população também. Ninguém joga lixo no rio, nem o cidadão, nem as empresas.
Para se ter uma ideia, há uma fábrica de cerveja nas margens do Limmat, em Zurique. Há também hotéis, casas, restaurantes. O que não há são ligações clandestinas de esgoto, pontos de despejo de rejeitos como vemos aos montes até nos pequenos córregos que cortam nossas cidades. E isso não é uma exclusividade de Zurique. Em Berna, capital administrativa da Suíça, o rio Aar, com suas águas de um belo azul-turquesa, também é utilizado da melhor maneira pela população.
Na Europa, que já teve rios para lá de poluídos, houve um trabalho de décadas para recuperar esses patrimônios naturais. Mesmo que ainda haja exemplos esparsos que ainda demandem alguma melhora, na maior parte dos lugares a lição de casa foi feita e os benefícios estão sendo colhidos agora, para a população local e para a atração de turistas. Um dos passeios mais concorridos de Paris é sobre as águas do Sena. Em Berlim, bebem-se ótimas cervejas em bares nas margens do rio Spree.
E se esse rio passasse em nossa vida? E se nos conscientizássemos de que é um ótimo negócio investir em despoluição, em educação ambiental, em limpeza de nossas águas? Teríamos uma qualidade de vida muito melhor se os paulistanos pudessem nadar no Tietê, se os goianienses conseguissem usufruir do Meia Ponte. Vendo os suíços nadando de braçada em suas águas, fiquei com inveja. E fiquei com vergonha. Os rios da Europa talvez simbolizem não só uma diversão, mas um abismo cultural.
Oi Rogério,
Amei seu texto. Ele vai de encontro com um pensamento que tenho há tempos. Sonho em ver o Rio Meia Ponte limpo, com vários parques em suas margens. Um deles poderia ser feito na antiga usina hidrelétrica, hoje um prédio abandonado que poderia servir até de museu, ali próximo ao lago do Jaó. Sonhar não custa, né.
Bjos!
Belo texto! Tocante! Sinto, como o autor, inveja e vergonha. Imagina o Recife, a “Veneza brasileira” com uma outra cultura ambiental…! Quando vi, em Zurique, as pessoas tomando banho no rio, praticamente no centro daquela grande cidade, fiquei emocionado, não só pela beleza do que via, mas pelo vislumbre de um sonho… o desejo de ver a mesma coisa por aqui, nesta terra que ainda não aprendeu a amar aos rios.
Favor corrigir na última linha: “aprendeu”. Obrigado.