O comandante Ahab substituiu a perna perdida em um embate épico pela obsessão em reencontrar sua grande inimiga, aquela que o mutilou. E ele percorre os mares atrás de sua perdição, vasculhando cada onda na esperança de ver a sombra branca de Moby Dick, a gigantesca baleia cachalote que mais parecia um monstro, um fantasma maligno a habitar as águas traiçoeiras e profundas do Oceano Pacífico. Uma luta que ele buscou como objetivo maior de sua vida e que termina de forma trágica.
Já o jovem Billy Budd vê sua inocência confrontada com tramas terríveis, escondido em um barco que mais parece uma prisão. De novo o mar como elemento natural de um personagem de mil facetas, que se encontra com outras criações igualmente complexas e que, na economia das palavras e nas descrições objetivas, criam um suspense às vezes claustrofóbico, às vezes atribulado. Nos sentimos como que conduzidos por vagas imprevisíveis, em altos e baixos que nos atordoam.
E o que dizer de Bartleby, O Escrivão, este ser estranhamente metódico, contratado por um escritório da Wall Street do século 19, que se revela um homem de trato difícil, que não se importa em ficar horas a fio de frente para uma parede, na maior parte do tempo recusando as tarefas que lhe são atribuídas? Com a resposta pronta “Acho melhor não”, ele refutava qualquer ordem, toda tentativa de aproximação e de decifração. Um homem sem códigos, misterioso, estranho até a última célula.
O escritor norte-americano Herman Melville, cujo bicentenário de nascimento é agora lembrado, é o pai desses seres intensos. Talvez tenha conseguido, em sua literatura, desenhar tipos tão peculiares e ao mesmo tempo verdadeiros porque viveu boa parte de um século cheio de transformações, em que a escrita ainda era a forma predominante de expressão. Nascido em 1º de agosto de 1819 em Nova York, morreu na mesma cidade em 28 de setembro de 1891. Tempo em que rodou o mundo.
Mesmo com educação formal, ele preferiu a aventura e ainda na juventude, encantado por navios que saíam para caçar baleias – e cuja tripulação era geralmente incompleta por conta de acidentes no mar –, ele tornou-se um marinheiro. E foi assim que conheceu o que é a traição humana. Na ilha de Nuku-Hiva, na região do Taiti, foi deixado com uma perna ferida por um companheiro de viagem. Sobreviveu porque foi resgatado, um mês depois, por um baleeiro australiano. Embarcava no Lucy Ann.
Todas essas peripécias foram compondo o escritor Melville. A experiência nos barcos, a quase morte em um lugar distante, a luta contra seres majestosos como as baleias serviram de matéria-prima para o autor, o que pode ser lido em livros como Typee e Omoo. Com passagens pelo Havaí e outras ilhas do Pacífico, ele foi amealhando experiências e episódios, que usaria em obras-primas, como Moby Dick e Billy Budd. Também passou pela Marinha dos EUA, mas não foi reconhecido como autor em vida.
Sua obra ganhou, de fato, projeção apenas no século 20, quando editoras e produtores de cinema descobriram em seus livros um manancial quase inesgotável de tesouros. Moby Dick, claro, lidera a lista de seus trabalhos mais populares. A versão do romance que John Huston produziu para o cinema, estrelada por Gregory Peck, tornou-se um clássico. Várias adaptações chegaram à tela grande e o livro serviu de inspiração para outras criações, como o despretensioso e excelente Tubarão, de Steven Spielberg.
Essa atração pelas obras de Melville é fácil de explicar. São enredos que revelam até que ponto pode ir o embate do homem não só com uma natureza selvagem e hostil, mas também com os monstros que carrega dentro de si. Esses, projetados para o exterior ou não, são os piores, os mais violentos e perigosos. E eles rondam por toda a parte, mostram-se apenas furtivamente, como quando Moby Dick, ao longe, deixava-se ver em seus contornos ameaçadores, revelando uma gigantesca advertência.
Ahab não se vinga e é atado à sua própria fixação. Billy Budd embarca em uma viagem que lhe mudará a personalidade e a vida. Bartleby mantém-se impassível, desafiador e hermético. Sentimentos tão profundos, tão marcantes, tão cheios de nuances que Melville soube traduzir com maestria. Sem dúvida, um dos romancistas basilares da literatura norte-americana de seu tempo, com ecos nas gerações posteriores, encantados por seu imaginário. Quem sabe uma certa baleia branca ainda não nade por aí?