Centenas de milhares de pessoas nas ruas emolduradas por arranha-céus, ao lado de um dos corredores econômicos mais dinâmicos do planeta, vizinhas do porto por onde passa mercadorias que vão para todo o mundo. Os atuais protestos dos habitantes da cidade-território de Hong Kong pela manutenção da democracia contra o regime fechado da China, essa estranha mistura entre economia capitalista e ditadura política comunista. Hong Kong não deseja estar sob as leis rígidas da China continental.
Um dos protestos mais intensos ocorreu exatamente no Aeroporto Internacional de Hong Kong, um dos maiores e mais movimentados do mundo. Moderno, com quase 500 portas de embarque, por onde passam cerca de 70 milhões de pessoas por ano, este lugar é uma espécie de símbolo de uma Ásia pujante, que prima pela alta tecnologia e que está aberta para quem deseja investir no extremo Oriente. As manifestações e a repressão violentas terem ocorrido exatamente ali é simbólico.
Quando chegamos a Hong Kong, a eficiência nos serviços é o que o mais chama a atenção logo de início. Metrô, ônibus e toda sorte de opções de transporte estão disponíveis, levando o visitante para qualquer parte dessa cidade moderna, que foi território britânico até 1997. Sua estratégica baía e seu porto foram cedidos aos ingleses em 1842, após a Primeira Guerra do Ópio, e serviram como um entreposto essencial para o comércio de iguarias. Era uma das joias do Império Britânico.
Isso explica, em parte, a origem dos protestos. Hong Kong, assim como Macau, outra cidade em um território autônomo devolvido à China, não passaram pela Revolução Cultural do líder Mao Tsé-Tung e jamais estiveram sob a mão pesada dos regimes de Pequim implantados no século passado. Pelo contrário, conseguiram se desenvolver independentemente, ainda que sob o controle de Inglaterra e Portugal, no caso de Macau, que se modernizou menos neste período.
Liberdade política
Hong Kong tem uma população de cerca de 7,8 milhões de habitantes. Sua renda per capta ultrapassa os 60 mil dólares por ano e tem uma das densidades populacionais mais altas do mundo, com mais de 7 mil pessoas por quilômetro quadrado. Ainda que esteja submetida ao poder central de Pequim, Hong Kong tem uma administração autônoma, com alfândega e imigração próprias e políticas mais democráticas que as da China. O representante é eleito e toma posse após aprovação chinesa. A Inglaterra só aceitou devolver Hong Kong se essa autonomia fosse preservada, o que não parece ser a intenção atual do regime chinês. Este é o mote dos protestos.
Há mais de vinte anos administrada por um regime misto, Hong Kong sempre foi uma ferida aberta para a China, que tem históricos problemas de rebeldia em outros lugares. Taiwan, uma ilha no Mar da China, é considerada uma província rebelde. O Tibete é um país ocupado pelo atual império chinês e sofre com a política repressora de Pequim. O medo dos manifestante é que algo semelhante acabe ocorrendo também com Hong Kong e Macau, onde o fluxo de dinheiro é intenso.
Por toda a cidade, essa dualidade pode ser vista. Enquanto foi colônia inglesa, as fronteiras entre Hong Kong e China permaneceram fechadas. Hoje isso tem mudado, mas a população da cidade desconfia das gigantescas obras de infraestrutura que a China tem construído por lá. Há poucos anos, foi inaugurada a maior ponte do mundo, com 55 km de extensão, ligando, em uma impressionante rede de pontes e túneis sob o mar, Hong Kong a Macau. Mas suas largas pistas permanecem vazias.
A ligação entre as duas cidades é feita em confortáveis embarcações, que saem a cada quinze minutos e cuja viagem dura menos de 1 hora. Já a ponte, que sai do porto de Macau e chega ao lado do aeroporto de Hong Kong, fica às moscas. Parece haver uma postura política de não utilizá-la, como a reafirmar a independência que querem manter em relação à China. O problema é que só a atitude não basta na geopolítica, sobretudo quando um PIB de quase 350 bilhões de dólares está em jogo.
Com centenas de centros comerciais, espaços culturais, atrações turísticas, hotéis de luxo, sedes de multinacionais, Hong Kong não dorme. As luzes de suas ruas movimentadas, de seus edifícios descomunais com arquitetura arrojada nunca se apagam. Pessoas falando vários idiomas lotam shoppings, restaurantes, mercados. Uma verdadeira babel em que se mesclam luxo e pessoas que buscam oportunidades. E os chineses do continente sabem que Hong Kong é uma boa alternativa.
Vai e vem na história
A posse do território de Hong Kong mudou de mãos algumas vezes nos últimos dois séculos. A China a cedeu em meados do século 19 para a Grã-Bretanha no Tratado de Nanking, que pôs fim à chamada Primeira Guerra do Ópio. No final daquele século, os ingleses ampliaram seus domínios, com mais territórios vizinhos. Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses ocuparam a cidade, que foi recuperada pelos britânicos em 1945 e devolvida à China em 1997.
A ilha de Hong Kong é dividida em duas partes por braços de mar, onde o trânsito de barco é constante. Pontes e túneis ligam as duas metades e prédios imensos se encaram de uma margem e outra. À noite, a cidade faz uma demonstração de grandeza e alta tecnologia, com um formidável espetáculo de luzes a partir de refletores localizados no alto dos arranha-céus, com música e projeções nas fachadas. Hong Kong diminui seu ritmo frenético para apreciar esse show único no mundo.
O maior teleférico do mundo, o Ngong Ping 360, com 6 km de extensão, leva os visitantes de um centro comercial nas proximidades do aeroporto até o templo do Buda Gigante, em colinas que ficam nas proximidades da metrópole. De lá, tem-se uma vista privilegiada da cidade, da ponte para Macau, da geografia que motivou a ambição de gerações e que está no centro dos protestos de agora. O porto, que mais parece uma cidade à parte, também impressiona, com seus milhares de containers.
Estar em Hong Kong é estar em um mundo à parte e o que está em jogo neste momento é exatamente a identidade desse lugar cosmopolita e que se vê diante de uma mudança política que não quer. Com sua gastronomia que não deixa a desejar para nenhuma outra grande cidade do mundo, com seus templos em montanhas que também denotam liberdade religiosa, com sua organização e seu dinamismo urbano, Hong Kong agora luta por sua liberdade. Mas a toda-poderosa China pensa diferente.