[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Catimbó
Mestre Carlos, rei dos mestres,
aprendeu sem se ensinar…
– Ele reina reina no fogo!
– Ele reina na água!
– Ele reina no ar!
Por isto, em minha amada acenderá a paixão que consome!
Umedecerá sempre, em sua lembrança, o meu nome!
Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.
E ela há de me amar…
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!
À luz do sete-estrelo nós havemos de casar!
E há de ser bem perto.
Há de ser tão certo
como que este mundo tem de se acabar…
Foi a jurema de sua beleza que embriagou os meus sentidos!
Eu vivo tão triste como os ventos perdidos
que passam gritando na noite enorme…
Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua!
Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua!
Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme…
E hei de tê-la,
hei de vencê-la,
ainda mesmo contra seu querer…
– Porque de Mestre Carlos é grande o poder!
Pelas três-marias… Pelos três reis magos… Pelo sete-estrelo
Eu firmo esta intenção,
bem no fundo do coração,
e o signo de salomão
ponho como selo…
E ela há de me amar…
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!
Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,
reina no fogo… Reina na água… Reina no ar…
– Ele aprendeu sem se ensinar…
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[2]
Mulata sarará
O cajueiro te deu a flor para cabelo;
deu-te o maracajá o agateado dos olhos
– teus olhos cujo olhar faz a gente dodói!
No Brasil, quem te nega está fazendo é fita,
pois tu és, na verdade, uma coisa bonita:
̶ Madeira que o cupim não rói!
̶ Madeira que o cupim não rói!
Paris – que dá modas,
costumes e gostos,
pinturas pros rostos,
carvão e carmim…
Paris – dente de ouro!
– Boca de Tubarão!
– Goela de Sucuri!
Que engole Odaliscas
Rajás e Sultanas,
as Gueixas, Musmês,
os Beis e os Paxás…
– E engoliu até a negra Josefina Baker!
Paris, contigo, topou foi osso!
Foi rocha esquisita que nada destrói!
Nosso Senhor abençoe teus avós de Lisboa…
– Madeira que o cupim não rói!
– Madeira que o cupim não rói!
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[3]
História Pátria
Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa ave-maria,
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
A gente vivia.
De festas no ano só quatro é que havia:
Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão!
Mas tudo emendava num só carrilhão!
E a gente vadiava, dançava e comia…
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
Todo santo dia!
O Rei, entretanto, não era da terra!
E gente pra Europa mandou-se estudar…
Gentinha idiota que trouxe a mania
de nos transformar
da noite pro dia…
A gente que tão
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
Vivia!
(E foi um dia a nossa civilização
tão fácil de criar!)
Passou-se a pensar,
passou-se a cantar,
passou-se a dançar,
passou-se a comer,
passou-se a vestir,
passou-se a viver,
passou-se a sentir,
tal como Paris
pensava,
cantava,
comia,
sentia…
A gente que tão
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente…
Vivia!
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[4]
Trem de Alagoas
O sino bate,
o condutor apita o apito,
solta o trem de ferro um grito,
põe-se logo a caminhar…
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
Mergulham mocambos
nos mangues molhados,
moleques mulatos,
vêm vê-lo passar.
– Adeus!
– Adeus!
Mangueiras, coqueiros,
cajueiros em flor,
cajueiros com frutos
já bons de chupar…
– Adeus, morena do cabelo cacheado!
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
Mangabas maduras,
mamões amarelos,
mamões amarelos
que amostram, molengos,
as mamas macias
pra a gente mamar…
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
Na boca da mata
há furnas incríveis
que em coisas terríveis
nos fazem pensar:
– Ali dorme o Pai da Mata!
– Ali é a casa dos caiporas!
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
Meu Deus! Já deixamos
a praia tão longe…
No entanto, avistamos
bem perto outro mar…
Danou-se! Se move,
Se arqueia, faz onda…
Que nada! É um partido
já bom de cortar…
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
Cana-caiana,
cana-roxa,
cana-fita,
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…
– Adeus, morena do cabelo cacheado!
– Ali dorme o Pai da Mata!
– Ali é a casa das caiporas!
– Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar…
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[5]
Oropa, França e Bahia
[ROMANCE]
Para os 3 Manuéis:
Manuel Bandeira
Manuel de Sousa Barros
Manuel Gomes Maranhão
Num sobradão arruinado,
tristonho, mal-assombrado,
que dava fundos pra terra.
(“Pra ver marujos,
Tiruliluliu!
quando vão pra guerra…”)
E dava fundos pro mar.
(“Para ver marujos
Tiruliluliu!
ao desembarcar”).
…Morava Manuel Furtado
português apatacado
com Maria de Alencar!
Maria era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar…
A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda a noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de “Oropa, França e Bahia”!
– Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
– Estás idiota, Maria.
Essas naus foram vintena
que eu herdei de minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais as trocaria!
Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra da Estrela,
Perfumes de benjoim…
Nada.
A mulata só queria
que Seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
pra ela ir ver essas terras
de “Oropa, França e Bahia”…
– Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da Quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só pra tu te distraíre
desse pensamento ruim…
– Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!
“Ó lua que alumiais
esse mundo do meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus…”
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.
“Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são”…
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente, no pilão…
Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul…
– Ah! Seu Manuel, isto chega…
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.
– “Onde vais, mulhé?”
– Vou me daná no carrossé!
– “Tu não vais, mulhé,
mulhé, você não vai lá…”
Maria atirou-se n’água,
Seu Manuel seguiu atrás…
– Quero a mais pichititinha!
– Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido de minha tia!
Vêm dos confins do mundo…
De “Oropa, França e Bahia”!
Nadavam de mar em fora…
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia…
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!
De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia…
Seu Manuel era um “Boi Morto”,
Maria, uma “Cotovia”!
E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?
– Continuam mar em fora,
navegando noite e dia…
Caminham para “Pasárgada”,
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante minha choradeira,
me deu a menor que havia!
– As eternas Naus do Sonho
De “Oropa, França e Bahia”…
Perfil
Ascenso Ferreira nasceu no dia 19 de maio de 1895, em Palmares-PE, e morreu, no dia 5 de maio de 1965, na capital pernambucana. Sob a orientação da mãe, cursou o primário e passa a sua infância na cidade natal. Por causa de sua militância abolicionista, sofreu perseguições políticas. Publicou seu primeiro soneto, “Flor fenecida”, no jornal A Notícia, de Palmares. Em 1916, fundou, com outros poetas, a sociedade Hora Literária de Palmares. Em 1917, alterou o seu nome para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira. Mudou-se em 1919 para Recife, onde se casou. Tornou-se colaborador de vários jornais da capital, dentre eles, o Diário de Pernambuco. Entre 1922 e 1925, travou amizade com Joaquim Cardoso, Luís da Câmara Cascudo, Souza Barros, Gouveia de Barros e Guilherme de Almeida. Em 1926, publicou o seu primeiro poema modernista. Integrou o grupo de intelectuais que lançou o movimento modernista em Recife. Com incentivo de Manuel Bandeira, publicou em 1927 Catimbó, livro de poemas, que Mário de Andrade considerou “um dos mais originais do modernismo brasileiro”. Por volta de 1928, teve início sua amizade com Mário de Andrade. Em 1939, publicou Cana caiana, o seu segundo livro de poemas. Em 1951, lançou no Rio de Janeiro uma edição de luxo, intitulada Poemas, que reuniu os livros anteriores e o inédito Xenhenhém. Em 1953, foi publicada a edição popular de Poemas, organizada por Souza Barros, com prefácio de Sérgio Milliet e trabalhos críticos de Mário de Andrade, Luís da Câmara Cascudo e Roger Bastide. Participou em 1955 do Congresso Brasileiro de Escritores em Goiânia e fez amizade com Pablo Neruda. Em 1963, Catimbó e outros poemas foi lançado pela José Olympio Editora, com ilustrações de Luís Jardim. São muitas as considerações críticas sobre a sua poesia. Para registro das mais relevantes, convém destacar o que disse Manuel Bandeira, no prefácio a Poemas: “Poeta de inspiração popular, a sua técnica do verso é, no entanto, sutil e requintadíssima. Costuma-se falar de verso metrificado e verso livre, como se algum abismo os separasse. Ascenso é o melhor exemplo com que se possa provar que não existe tal abismo. Nos seus poemas, mistura ele os versos do ritmo mais martelado, os que por isso mesmo os cantadores nordestinos chamam ‘martelo’, com os versos livres mais ondulosos e soltos, com frases de conversa e música pelo meio.” Mais adiante, identifica o universo no qual sua poesia se assenta: “Ler, e sobretudo ouvir Ascenso, é viver intensamente no mundo dos mangues do Recife, do massapê e das caatingas, mundo do bambo-do-bambu-bombeiro, das cavalhadas, dos pastoris, dos reisados, dos bumbas, dos maracatus, das vaquejadas. Mundo onde as aragens são mansas e as chuvas esperadas: chuvas de janeiro… chuvas de caju… chuvas de Santa Luzia… Os poemas de Ascenso são verdadeiras rapsódias do Nordeste, nas quais se espelha amoravelmente a alma ora brincalhona, ora pungentemente nostálgica das populações dos engenhos e do sertão.” De Ascenso Ferreira foram publicadas postumamente, em 1986, três obras: O Maracatu, Presépios e Pastoris e Bumba meu Boi. Vários compositores brasileiros musicaram seus poemas, como Heitor Villa-Lobos e Alceu Valença.
Ascenso Ferreira – Brasil pra ninguém duvidar!
Livro de Poesias
Aprendi da forma mais dura
O que é ser um Livro de Poesias,
E a maior de todas minhas alegrias,
É ser sempre um marco na Literatura.
Desvenda-me em uma única vez rápida
Ou até mesmo com calma se sozinho.
Faço-te sempre na solidão companhia,
Porque com das suas dores sou um clássico.
Se Poesia não for mesmo amor estou enganado.
Meu autor errou em cada sentimento estampado,
Pois das palavras ainda sou um conjunto elegante.
Sou muito de amar como deveria eu ser mais amado,
Mas acabo no fim geralmente num canto largado
Abandonado como um indigente na estante.
Jorge Jacinto da Silva Junior