[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Le Corbusier
II
Risco à régua
um ritmo reto
retém o rumo
rude da pedra
milimetrado voo
via viaduto vão
respira a planta
trevo sem trégua
calado cálculo
concreto decalca
as ruas na cal
calçadas: calmas
avenidas claras
avançam: vazias
janelas vidradas
fachadas frágeis
pilotis plantados
cubos de granito
blocos de cimento
fixos: edifícios
iluminados traços
de alumínio: vivos
veículos vestidos
de ferros e vidros
gestos e linhas
vínculos e vigas
faixas e listras
cinética imagem
cidade.
Dual (1966)
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[2]
Corpo de delito
I
Escuta o rumor nas margens plácidas
feitas de lama, sangue e memória
escuta
o brado retumbante
na garganta
do túnel;
por entre as grades do grito
o céu da liberdade viaja,
e o sol, sem Pátria, se espalha,
nesse instante, no cimento.
Aqui, Senhor, tememos
o braço forte
que abre os seios
se abate, sem remorso;
aqui, no peito,
os sussurros do coração,
o muro de murros desabado,
os urros na boca do corpo de entulho,
e os erros da minha mão
que apalpa a própria morte.
Nesta cela que sonho nenhum
se escreve nas paredes,
nesta sala de azulejos lívidos,
um raio de dor sempre aceso
e vívido, à terra desce;
o céu é o sol desta luz
em cada nervo,
e em cada um de nós
um límpido incêndio
resplandece.
Daqui escuto o passo dos gigantes
pisando, impávidos, a paisagem;
escuto a marcha dos colossos
por cima dos ossos,
por cima dos mapas de mar
e grama;
escuto as botas dos passos
nas poças do corredor,
cada vez mais próximos,
dos calcanhares nus do meu futuro.
II
Sentado na cadeira do dragão,
largado no berço profundo do chão,
sobre o som do mar
o céu fulgura,
com o seu sol elétrico
que não cessa o curso-circuito,
o curto, o choque,
o surto
em chamas do dia iluminado
nos porões iniciais de um Novo Mundo.
As flores que aqui gorjeiam,
garridas, em suas jaulas,
se agarram na beira da vida
que cisma e insiste,
e continua avançando
por entre vadias várzeas e charcos,
e exclama e se espanta
como a primeira palmeira brusca
que busca o espaço
no bosque de fumaça no horizonte.
Aonde está você, amor eterno
que não drapeja no vento
sua flâmula trêmula de estrelas?
Aonde o verde-louro,
o céu de anil e mel
o lábaro, a labareda de pano
que o látego rasga e marca?
Aonde a glória do passado
se o presente é este furo
de bala na pele do futuro?
Mas se ergues, ainda sim,
a clava forte do seu corpo,
e não foge à luta;
nem teme a própria morte
que avança armada
até os dentes,
verás
os raios fúlgidos
do sol em liberdade no céu,
e neste chão de terra que se ama!
À Mão Livre (1979)
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[3]
1986
Não sei se é flauta, luar ou neon
No front do Ano-Novo
tudo são joias usadas e sentidas.
São fogos que logo depois de cegos
se afogam.
São vidas de fósforo
escritas a lápis-laser
e vigília de velas
esgrimindo à beira-mar.
Num minuto
todas as nuvens se anulam
num azul tão agudo
que só o sol
poderá mais tarde agonizar aqui:
cru, alto e bruto
em amarelo pleno e câmara lenta.
A lua ainda ladrilha o mar
diante dos olhares fixos dos edifícios
no horizonte
onde
defronte das ondas
palmeiras se espantam
e sobem
até o terraço do último andar
abrindo mãos de cinco palmas
de encontro ao céu
nesta terra de eternos terremotos.
E nesta língua em que falo, moro, morro
escrevo e estrela:
lama e alma é um anagrama
ou um amálgama?
Auréola, pérola, alegoria – allegro, não
De Cor (1988)
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[4]
Suspeito no quarto
Quebrando a cabeça na mesa.
O sintoma sou eu, e o corpo meu fantasma.
Gancho de sombra chumbado na parede:
preso, não se desprega, não me desacompanha –
prego – não abre a garra, com que se enterra.
Procuro no breu a cura, a tomada certa
para a entrada e fruição, para fixar-me
sem ferir-me muito, e me iluminar, tal o lustre
de cristal no teto, doendo de tão aceso.
Ouvir-me, ver-me, falar-me. O computador
não me comporta: extravaso para além
da camisa de força digital, sem me salvar
para dentro do dia que virá – verme, verruma –
e que vai ser indiferente como este:
o mar no retrovisor, o longo amor se afastando
o erro fatal na ordem natural das coisas, absorvido.
E o que uniu a vida – a princípio, no instante, depois
na estatística – e, finalmente, na cera do pesadelo.
Lar, (2009)
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[5]
Escritor, escritório
[Três excertos]
Não transponho Camões, mas me empenho.
Não atravesso seu mar manuscrito
porque me afogo na incompreensão
no enfado, no palavreado castiço
na análise sintática dos seus versos
onde erro na prova urgente, aflita
sem ouvi-los soar na página a pleno
de difícil lida, da ilimitada luta
na travessia da linha, da estrofe
empolgante, empolada, que arrebata
a vastidão do céu desconhecido
que vai se descobrindo, nuvem por nuvem
até o sol nomear a praia do primeiro passo.
⁕
Escrevo porque escrevo.
Quando dei por mim, escrevia.
Escrever não tem princípio ou final.
Me mantenho escrevendo.
Luto contra meu corpo desde o início.
Me tenho, escrevendo.
No teclado, ou com a caneta, o lápis.
Mas devido à rapidez
com que penso e esqueço
devia usar a pena de dois séculos atrás
que casa melhor com o gesto incisivo
que imagino, preciso
com sua penugem de asa, com o bico
de um pássaro qualquer, de rapina
mergulhando, veloz e voraz, repetidamente
no gargalo, na garganta do tinteiro
para pegar, pescar, a voz úmida, submersa
contínua e escura, que não pode secar.
⁕
Desentendo-me comigo
quando me leio nos que me leem
e que montados sobre mim, escrevem
na resenha, no artigo, no ensaio, na dissertação, na tese.
Não vi o que viram ou viram
o que não procede, o que eu vejo
mais ou menos, pró ou contra?
Ninguém acerta em cheio nunca
nem eu no desacerto com os outros?
Não consigo segurar os tomos
que tomaram dos meus dedos, e a fruição
antes do gozo, ou no meio, antes do fim, que não há?
Ou ainda, quando me oferecem
outro prazer não previsto nem sabido?
Ou outra dor sentida e inesperada?
Ou me fazem ler que muito pouco valeu a pena?
Ou que valeu. Enquanto eu parado na porta da recepção
de mim para mim, não consigo dirimir a dúvida irredutível
do destino que já estava escrito.
Rol (2016)
Perfil
Armando Martins de Freitas Filho nasceu em 1940 no Rio de Janeiro. Foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Biblioteca Nacional. Prestou também assessoria ao Departamento de Assuntos Culturais do MEC, ao Instituto Nacional do Livro (INL) e à presidência da Funarte, à época dirigida por Ferreira Gullar. Em 1963, publicou Palavra, o seu primeiro livro de poemas. Daí vinculou-se à poesia práxis, instaurada por Mário Chamie. Essa tendência de vanguarda se opôs à poesia concreta. Foram escritos em seguida Dual (1966) e Marca registrada (1970) sob os cânones desse movimento. Com De corpo presente (1975), enveredou-se por outros caminhos poéticos, publicando um conjunto notável de livros: Mademoiselle furta-cor (1977), À mão livre (1979), longa vida (1982), A meia voz a meia luz (1982), 3X4 (1985, Prêmio Jabuti), Paissandu Hotel (1986), De cor (1988), Cabeça de homem (1991), Números anônimos (1994), Dois dias de verão (1995), Cadernos de Literatura 3, com Adolfo Montejo Navas (1996), Duplo cego (1997), Erótica (1999), Fio terra (2000, Prêmio Alphonsus de Guimaraens), 3 tigres (2000), Sol e carroceria (2001), Tríptico (2004), Trailer de raro mar (2004), Raro mar (2006), Para este papel (2007), Tercetos na máquina (2007), Mr. Interlúdio (2008), Lar, (2009), Pingue-pongue (2012), Dever (2013, Prêmio Alphonsus de Guimaraens), W (2005) e Rol (2016). Em 2013, sua poesia reunida e revista foi lançada pela Nova Fronteira, com o título de Máquina de escrever. Publicou também dois livros infantojuvenis. Com Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, publicou ainda, em 1970, o ensaio Anos 70 – Literatura. A sua criação poética sempre esteve associada às artes gráficas, tendo de perto a colaboração de Rubens Gerchman, Marcelo Frazão, Anna Letycia, Sergio Liuzzi, entre outros. Além de ter gravado CD e DVD, foi personagem do documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície, dirigido por Walter Carvalho e produzido em 2016. Como curador, organizou a obra póstuma da poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983), escrevendo textos de introdução e selecionando textos dispersos. Como ele próprio declarou, a sua poesia é influenciada por Bandeira, Drummond, João Cabral e Ferreira Gullar. Em prefácio ao livro À mão livre, José Guilherme Merquior reconhece que “o seu estilo vem da poética experimental das vanguardas, de que participou como poeta práxis. O amor à paronomásia conserva nos seus textos de hoje algo dessa antiga disciplina, assim como a desinibição inventiva do seu léxico”, citando como exemplo o verso no qual utiliza a expressão “deslumbrilhante cascatarata”, um neologismo desconcertante. Em enfoque mais detalhado, Vagner Camilo diz que “as experiências são vivenciadas de forma intensa e dilacerada, e espelhada na contundência de uma escrita que aprendemos a apreciar justamente pelas imagens impactantes (sobretudo corporais), pelo poder de sugestão da musicalidade (produzida por força das paronomásias e aliterações), pelas elipses, suspensões sintáticas, cortes bruscos…” Os seus poemas foram traduzidos para o espanhol, catalão, inglês, alemão e francês.
Veja a seguir um trecho do documentário Perto do Fogo: 50 anos de Poesia, de André Rangel Rios, sobre o poeta Armando Freitas Filho: