[Coautores: Isabella Krein Soares[1], Carlos Augusto Damasceno [2]e Weiny César Freitas Pinto][3]
Gostaríamos de analisar neste ensaio o estilo musical rap como ferramenta de crítica e resistência do negro brasileiro[4]. Entendemos que a arte – especialmente o rap, mas também outras expressões, como o hip hop ou o samba – contém potencial crítico contra-hegemônico, do qual é possível extrair certo engajamento sociopolítico, especialmente quando o concebemos como mecanismo de expressão, representação, tolerância e crítica social. É o caso, por exemplo, de That’s My Way (Este é o Meu Caminho), rap brasileiro que atingiu cerca de quase 60 milhões de visualizações no Youtube e que, em sua composição, recrimina o racismo e suas especificidades. Essa música torna possível a análise e a comparação de seu conteúdo com discussões teóricas, como a de Voltaire, sobre a tolerância[5]. É possível afirmar, nesse sentido, que esse estilo de música pode ser utilizado como ferramenta para um trabalho de reflexão crítica e também como objeto de estudo para interpretações e análises sobre a realidade social.
No Brasil, a condenação do negro à escravidão por mais de 300 anos acabou por deturpar a identidade negra do país, acarretando consequências até os dias atuais. Nesse sentido, ainda se questiona com legitimidade, em pleno século XXI, a falta de representatividade e de protagonismo político, empresarial ou artístico do negro. Além do fato de ainda ser necessário contestar a maneira histórica, social, política e econômica segundo a qual foi construída sua mínima representação existente nesses espaços, resultando numa visão extremamente estereotipada do negro.
A música, que é uma das principais manifestações da tradição e da cultura negras, também se tornou uma vertente relevante de contestação. Nessa perspectiva, desde a musicalidade religiosa nos terreiros de candomblé e umbanda até as dimensões do samba, funk e hip hop, a música negra se apresenta como construção de identidade e resistência, para além da função de apenas entretenimento da arte.
Nesse quadro, o hip hop, interpretado por meio de ações artísticas, culturais e políticas, constituiu-se como exemplo de cultura contemporânea de resistência negra, propiciando a expressão da voz do marginalizado, do excluído, além de uma reflexão acerca daquilo que reprime as classes menos favorecidas. O movimento hip hop coloca o “eu” da consciência coletiva em face do complexo. Faz isso ao trazer à tona, sem meias palavras, o problema da desigualdade racial, comumente camuflado pela nossa sociedade.
O rap, por sua vez, é a expressão que mais difundiu e difunde este movimento de resistência, inclusive na mídia. Traz à tona o preconceito racial e social, a pobreza e a violência, presentes no cotidiano das comunidades negras, sendo uma manifestação contemporânea fundamental na cena cultural brasileira. Na construção do estilo rap, observa-se especialmente o relato da exclusão, da violência, mas também da riqueza cultural e da resistência negra brasileira. Cada vez mais, desde a aparição de nomes como MV Bill, Racionais MC’s, Criolo, Flávio Renegado, Emicida, Djonga, Froid, entre outros, esse estilo tem deixado as margens periféricas da sociedade e vem se inserindo em novos espaços.
A título ilustrativo de tal expansão, citamos o verso “Tudo, tudo, tudo que noiz tem é noiz[6]”, proferido no documentário AmarElo, do rapper brasileiro Emicida[7]. Essa marcante passagem do documentário mostra não apenas a história da construção do rap nacional, mas também explica como o samba foi e ainda é um grande fomentador desse estilo musical, bem como repertoria grandes nomes de negros de suma importância para a construção da cultura negra brasileira, como os membros fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU)[8].
Tomando como exemplo o argumento de Voltaire (2008, p. 30), no qual ele compara o “direito à intolerância” a um tigre que dilacera sua presa – ou seja, um direito absurdo, pois tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós, humanos, exterminamos por causa de parágrafos –, percebemos que o filósofo, ao defender a liberdade de pensamento e de expressão, repudia veementemente a intolerância, isto é, ninguém tem o direito de ser intolerante. Esse suposto “direito” nos torna seres menos morais que tigres, que matam por comida, enquanto nós matamos por parágrafos ou pela diferença de cor das pessoas.
E neste mundo moral de tigres e humanos, o rap surge como um grito do negro que luta diariamente por igualdade e dignidade, enfrentando, com o próprio corpo, com a própria vida, quem deveria proteger a todos – a polícia –, mas que, todavia, fere e mata. Não custa lembrar que o Estado racista se vale de vários instrumentos de opressão do negro, um deles, sem dúvida, é a violência injustificada cometida frequentemente por sua polícia.
Diante disso, o rap pode ser considerado um símbolo de resistência e de unidade negras, temas centrais nas suas letras. Símbolo de resistência, porque trata da dura realidade dos bairros periféricos e denuncia a violência policial, uma das mais severas formas de racismo no Brasil. Símbolo de unidade, porque promove união e respeito nas comunidades, além de criar “o orgulho de quem você é, de onde você veio” (Rock, 2017). Nesse sentido, a crítica que se destaca na letra de That’s My Way, com a participação de Seu Jorge, tem como tema central o racismo vivido pelos negros brasileiros, cuja cicatriz deixada pela escravidão é retratada como “feridas que não saram”, ou seja, demonstra como o racismo machuca e como ofensas racistas não somem da vida da pessoa negra.
A intolerância em relação ao negro ainda é muito presente no Brasil e no mundo, e tal fato tem se tornado cada vez mais evidente nos dias atuais. O ano de 2020 deixou bastante claro que o rumo da intolerância racista leva à morte, basta lembrarmos dos dois casos de maior repercussão ocorridos recentemente: dois homens negros foram brutalmente assassinados por policiais e seguranças; o primeiro, George Floyd, morto asfixiado por um policial americano, que pressionou seu pescoço com o joelho, fato ocorrido nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020; o segundo, João Alberto, brasileiro morto em um grande supermercado, vítima de asfixia por enforcamento, por dois seguranças, sendo um deles policial militar. Seguramente, essas duas mortes se associam ao racismo, racismo que o rap combate desde sua origem, expondo em detalhes a vida e as dificuldades que os negros vivem diariamente.
Frisamos que a resistência do negro vai para além do rap. Vejamos, como exemplo, Elza Soares, mulher negra, que canta para os negros, sendo um dos maiores nomes da música popular brasileira, e que contribui diretamente para resistência antirracista por meio da música. Na letra de A Carne, composição de Seu Jorge e Marcelo Yuka, Elza canta o tema do racismo e da estrutura racista social brasileira. Frases como “A carne mais barata do mercado é a carne negra” e “Que vai de graça pro presídio, e para debaixo do plástico” só confirmam a luta e a dor cantadas. Dores e lutas que a segunda parte do rap de Edi Rock leva adiante. Ele pede às pessoas para se prepararem, pois a revolução se aproxima e tal revolução tem o objetivo de fazer que o racismo chegue ao fim.
Sem o rap, sem a música, muitas vozes negras seriam ainda mais caladas, já que o seu objetivo é expressar em alto e bom som que o negro tem voz, que o negro pensa. Portanto, o rap, bem como outras formas de musicalidade da resistência negra, contribui para a luta contra o racismo, tirando a violência e o sofrimento negro da invisibilidade. É importante lembrar o que afirma a filósofa Djamila Ribeiro (2019, p. 30): “[…] para pensar em soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. […] O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir”.
E que a luta pela liberdade e pela igualdade, bem como pelo fim do preconceito, pelo fim da discriminação, pelo fim do racismo e pelo fim de tudo que massacra os negros no Brasil só acabe quando isso tudo deixar de existir!
Referências
CASO George Floyd: morte de homem negro filmado com policial branco com joelhos em seu pescoço causa indignação nos EUA. BBC NEWS, São Paulo, 27/05/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-filmado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml. Acesso em 08/12/2020.
CASO João Alberto: veja perguntas e respostas sobre a morte de um cidadão negro em um Carrefour de Porto Alegre. G1 RS, Rio Grande do Sul, 23/11/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/23/caso-joao-alberto-veja-perguntas-e-respostas-sobre-a-morte-de-um-cidadao-negro-no-carrefour-em-porto-alegre.ghtml. Acesso em 08/12/2020.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo, Companhia de Letras, 2019.
ROCK, Edi. Seu Jorge. That’s My Way. Morro Vidigal, RJ. 2013. 6:48. Disponível em: https://youtu.be/ysfm_adxRrI. Acesso em 09/12/2020.
SOARES, Elza. A carne. Do Cóccix Até o Pescoço. Maringá. 2002. 4:49. Disponível em: https://youtu.be/yktrUMoc1Xw. Acesso em 09/12/2020.
UMA história oral do Movimento Negro Unificado por três de seus militantes. Brasil de Fato, São Paulo, 05/04/2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/04/05/uma-historia-oral-do-movimento-negro-unificado-por-tres-de-seus-fundadores. Acesso em 09/12/2020.
VOLTAIRE.Tratado sobre a tolerância. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2008.
[1] Graduanda do curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: isabella.krein16@outlook.com
[2] Professor concursado de filosofia da Rede Pública Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: cadvog@gmail.com
[3] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
[4] O termo rap significa rhythm and poetry (ritmo e poesia). Surgido na década de 1960, esse gênero musical foi apresentado pelos jamaicanos para os estadunidenses, mais especificamente nos bairros pobres de Nova York, no começo da década de 1970, a partir de onde se espalhou para o mundo.
[5] Filósofo iluminista francês que se destacou no combate à intolerância ao escrever a obra Tratado sobre a Tolerância, na qual defende a inocência dos Calas, família vítima de erro judiciário motivado pela intolerância religiosa.
[6] Principia, música de Emicida.
[7] Disponível na Netflix.
[8] O MNU é um movimento criado no fim da década de 1970, inicialmente em São Paulo, e em seguida no Rio de Janeiro, para dar resposta à discriminação racial sofrida pelos negros, tendo como fatos deflagradores específicos o racismo sofrido por quatro garotos do time infantil de voleibol do Clube de Regatas Tietê e, também, a prisão e a morte, em decorrência da gravidade da tortura sofrida por agentes do Estado, de Robson Silveira da Luz, trabalhador e pai de família (cf. Brasil de Fato, 2019).
O texto é o oitavo da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
Excelente texto! Vai direto ao ponto crucial: nada mais urgente e fundamdntal do que encarar esse debate e ensaiar novas práticas. Vamos divulgar, utilizar em “sala”. Obrigado!
Fico feliz que tenha gostado!! Depois me conte como foi o debate com seus alunos