Em 16 de outubro de 1992, o Madison Square Garden recebia uma apresentação ímpar na história da música, carinhosamente apelidada de “Bobfest”: a celebração dos 30 anos do primeiro álbum de Bob Dylan e, portanto, de sua carreira pública. O elenco de artistas a performar um set list recheado de clássicos espanta, vez que reuniu os maiores nomes de variados momentos da canção popular de língua inglesa, orientados à justa homenagem.
É a sensação retrospectiva, dessa forma, que − excetuando-se o disco a que dirá respeito esta análise − permeia o início dos anos 1990 na cronologia do bardo de Minnesota. The Bootleg Series Volumes 1-3 (Rare & Unreleased), de 1991, dá início às compilações oficiais de raridades, out takes e inéditas que, ora no 15º volume, resultam em alguns dos melhores apanhados que a arqueologia musical já engendrou. Good As I Been To You e World Gone Wrong, de 1992 e 1993, respectivamente, trazem versões acústicas de Bob Dylan para canções dos primeiros deuses de seu panteão folk. Mais à frente, a absoluta obra-prima Time Out Of Mind (1997) revela-se grande marco na carreira do cancionista e ventila novos ares em sua produção autoral.
O ponto fora da curva aludido é o álbum Under The Red Sky, de 1990. Longe de ser um dos melhores trabalhos de Bob Dylan e ainda mais distante de representar um sucesso de crítica, destoa, contudo, por sustentar linguagem própria incomum que, ao cabo de alguns exercícios de assimilação, denota mensagens deveras interessantes. Muitas das canções do disco são arraigadas em nursery rhymes, isto é, têm traços característicos de cantigas infantis tradicionais e mesmo retomam e recriam versos delas. A dedicatória do trabalho, “For Gabby Goo Goo”, apelido da filha mais nova de Dylan, então com 4 anos de idade, deu azo à impressão inicial de que tratava-se de música estritamente infantil. Entretanto, a ambientação fabulesca de Under The Red Sky culmina quase sempre em desfechos trágicos e nebulosos, de pouca afinidade à esperança − ao contrário, operam no sentido de retornar à drasticidade por vezes cruel dos contos maravilhosos originalmente coletados da cultura oral, como adiante demonstrar-se-á.
Em Dylan’s Visions Of Sin (2003), Christopher Ricks define com brilhantismo o álbum, anotando-o “uma combinação de nursery rhymes ancestrais e de mal-estar moderno: são rimas amaldiçoadas (e não superficiais)”. O autor, brincando com as palavras nursery, cursery e cursory, revela a aparente contradição entre forma e conteúdo em Under The Red Sky, como se a roupagem de conto de fadas não dirigisse o enredo logicamente ao “e viveram felizes para sempre”, mas uma conjunção fatal encaminhasse o príncipe, a princesa enclausurada e a madrasta, ou Chapeuzinho Vermelho, a vovozinha e o lobo ao mesmo destino maculado, sem maior distinção. É exatamente o que ocorre.
Duas canções são sobremaneira representativas da definição anterior. A homônima ao álbum e a que o fecha, ou seja, Under The Red Sky e Cat’s In The Well. A primeira é verdadeiramente um conto de fadas, em que pese não ser o hit do cancionista que inicia com “once upon a time”. “Havia um garotinho e havia uma garotinha/ E eles viviam num beco sob o céu vermelho”, inicia o narrador seu relato maravilhoso. “Havia um velho e ele vivia na lua/ Num dia de verão ele passou por ali.” O cenário está posto e proporciona a expectativa do embate entre as crianças e o homem idoso, que movimenta-se (e podemos apenas inferir que é ele quem fala) no sentido de prometer à menina um futuro magnânimo, pois “Um dia, garotinha, tudo para você será novo/ Um dia, garotinha, você terá um diamante tão grande quanto seu sapato”. A forma com que as crianças deixam a cena, não obstante, é imprevisível e cruel: “Deixe o vento soprar baixo, deixe o vento soprar alto/ Um dia o garotinho e a garotinha foram assados numa torta”, arremata o narrador.
Não houve sequer oportunidade de o garotinho e a garotinha buscarem, mediante a astúcia e a inteligência com que agiram João e Maria na narrativa tradicional, enganar e vencer seu impreciso algoz. A isso seguem-se versos bastante crípticos em que, como em parte significativa da obra de Bob Dylan, reverberam referências bíblicas e emula-se com veemência a paisagem apocalíptica. “Esta é a chave do reino e esta é a vila/ Este é o cavalo cego que te leva por aí// Deixe o pássaro cantar, deixe o pássaro voar/ Um dia o homem da lua foi para casa e o rio secou.”
Faz-se necessário mergulhar no verdadeiro significado dos contos maravilhosos, pedras angulares da experiência humana, para obter as supramencionadas mensagens interessantes. Walter Benjamin, no célebre O Narrador: Considerações Sobre a Obra de Nikolai Leskov (1936), tece considerações basilares sobre o gênero. “‘E se não morreram, vivem até hoje’, diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência provocada pelo mito.” Benjamin postula a narrativa maravilhosa como enfrentamento ao mundo mítico, porque dialetiza a coragem em astúcia e arrogância. A canção de Dylan, no entanto, não oferece conselhos nem incute bravura nas personagens infantis. O que sucede a emergência do mito é o esvaziamento da dimensão esperançosa.
Isso talvez aconteça porque Under The Red Sky remonte às primeiras versões dos contos maravilhosos, fiéis à oralidade e atestadoras da essência popular, que não raro é impiedosa. Em verdade, o público a que se destinavam essas narrativas tradicionais não era exatamente o infantil: Marie Louise Von Franz, em A Interpretação dos Contos de Fadas (1981), diz que “Até os séculos XVII e XVIII, os contos de fadas eram − e ainda são nos centros de civilização primitivos e remotos − contados tanto para adultos quanto para crianças. Na Europa, eles costumavam ser a forma principal de entretenimento para as populações agrícolas na época do inverno. Contar contos de fadas tornou-se uma espécie de ocupação espiritual essencial. Chegou-se mesmo a dizer que os contos de fadas representavam a filosofia da roda de fiar.” As histórias − como, além das mencionadas anteriormente, Barba Azul, Rapunzel, A Gata Borralheira, O Pequeno Polegar e inúmeras outras − traziam originalmente alusões a adultério, estupro, homicídio e formas de violência tão ou mais hediondas, e intentavam purgá-las ou evitá-las com a força dos potentes conselhos a que referencia Walter Benjamin, capazes de moralizar e ensinar os ouvintes.
Com Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), as narrativas maravilhosas ganham outro veículo, pois esses intelectuais coletaram-nas de fontes orais alemãs com minúcia de pesquisadores e as compilaram em prosa, pouco antevendo o sucesso posterior das coletâneas. A realidade é que, numa época em que os povos que formariam a Alemanha careciam de unidade nacional, os Irmãos Grimm realizavam a busca por mitos, lendas e histórias fantásticas que dessem conta de registrar o laço ancestral comum germânico. Miravam o Volkgeist romântico, isto é, o espírito de seu povo, e a outra obra de suas vidas seria o Dicionário Definitivo da Língua Alemã, que não concluíram. Nesse sentido, seu esforço foi maior do que o do francês Charles Perrault, único escritor antecessor a compilar tradição semelhante, com paridades interessantes entre os apanhados desses autores.
Caindo como luva no gosto do público infantil, em suma por sua lógica sincrética e globalizante, igual ao modo de enxergar o mundo próprio à criança, os contos maravilhosos foram, ao longo dos séculos (e o processo iniciou-se ainda com os Irmãos Grimm vivos), objeto de suavizações de conteúdo. A essência ainda é assimilada sem os elementos violentos e drásticos anteriores, mas a voz popular certamente é prejudicada ao ponto das adaptações animadas de Walt Disney. O que, em algum sentido, não representa desvirtuamento, vez que a renovação constante e a possibilidade de novas versões são particularidade suprema do gênero. Bob Dylan aplicou-a em Under The Red Sky.
A canção do norte-americano retorna ao veículo primevo do conto maravilhoso, a oralidade, para dar testemunho do espírito do povo de sua época − o final desiludido do século XX. De fato, é a expressão inconteste do “primeiro narrador verdadeiro”. Não há suavizações, à maneira das narrativas originais: nursery rhymes e mal-estar moderno. A grande diferença perpetrada pelo último fator, pois, é o fato de que não há nenhum rastro de moral, nenhum ensinamento ou conselho remoto que evite a violência e o fim dos tempos. “Um dia o garotinho e a garotinha foram assados numa torta”, simplesmente. “E se não morreram, vivem até hoje” ou “E viveram felizes para sempre” não é arremate possível ao conto de fadas de Bob Dylan.
Cat’s In The Well, a canção que fecha o álbum em análise, a seu turno, é outra amostra de mesmo teor. A personagem principal é um gatinho que se encontra no fundo de um poço. “O gato está no poço, o lobo está olhando para baixo”, e a partir disto várias situações de perigo ou desilusão são postas, mas o gato continua preso, sem possibilidade de ação ou intervenção na realidade. “O gato está no poço e a dor mostra seu rosto/ O mundo sendo massacrado e é uma desgraça tão sangrenta”: mais uma vez, o contraste entre ambientação fabulesca e horror desesperançoso é pungente, até que, ao cabo da canção, “O gato está no poço, as folhas começam a cair/ Boa noite, meu amor, que o Senhor tenha piedade de nós”, sem maior consideração.
A distância entre esse Dylan e o de uma década antes, compositor sobretudo gospel, é abismal. Converter-se ao cristianismo e ser uma property of Jesus não importam mais porque a salvação não é sequer cogitada − resta clamar (ou nem isso) pela piedade divina. O decorrer dos anos 1980, conforme esta série analítica mostra, apontou a tal sentimento. Imprevisível, contudo, como muita coisa no gênio de Bob Dylan, é a roupagem que ele toma em Under The Red Sky. Álbum de grande estranheza.