As diversas formas de arte sempre se comunicaram, num movimento contínuo de interconexão e influências mútuas. A literatura, a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas e demais manifestações artísticas de ontem e hoje estão sempre dialogando entre si.
Numa iniciativa rara no Brasil, o artista plástico Luiz Eugênio Quintão Guerra, mais conhecido como Genin Guerra, uniu suas três paixões artísticas num álbum de esculturas em cerâmica que homenageia grandes criadores e personagens da música brasileira.
O livro Solo – Álbum das Glórias Musicais reúne 44 esculturas caricaturais de nomes fundamentais da música nacional, num compêndio enciclopédico que vai do popular (como Alvarenga e Ranchinho, Cartola) ao erudito (Carlos Gomes, Villa-Lobos, entre outros), relembrando um amálgama de gêneros conhecido na produção musical brasileira. O livro foi patrocinado pela estatal de energia Cemig, por meio de lei estadual de incentivo à cultura de Minas Gerais.
Natural de Itabira, Genin Guerra foi cofundador do Cometa Itabirano, jornal histórico de Minas Gerais, da terra de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), de quem Guerra foi por várias vezes caricaturista. Uma parte importante dessa coleção dele sobre o poeta está atualmente exposta (até o fim de agosto) no restaurante Andrade, na capital mineira.
Foi também para o poeta um dos primeiros trabalhos em escultura, uma arte que Genin Guerra, um desenhista/chargista nato, só começou nos anos 2000. A ideia do livro, contou Guerra em conversa por telefone a ERMIRA, nasceu a partir dessa experiência na escultura e do encontro dele com obras de artistas europeus que juntavam essas duas artes, a caricatura e a escultura.
Daumier e Pinheiro
O francês Honoré Daumier (1808-1879) notabilizou-se por fazer caricaturas críticas de figuras políticas de sua época. Considerado o “Michelangelo da caricatura”, ficou preso por meses em 1831 por zombar do rei Luís Filipe. A essa influência, cujas obras Genin Guerra conheceu em Paris, se somou a experiência do português Bordalo Pinheiro, de onde veio a inspiração para o título do livro Solo.
É que Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) também reuniu em livro (Álbum das Glórias) figuras caricaturais de personagens públicas, políticos, jornalistas, intelectuais e artistas portugueses do século 19. “Mas como eu não queria fazer [o livro] com políticos, resolvi homenagear esses grandes compositores da música que eu sempre ouvi e admirei. Gostei do título do Bordalo e resolvi só acrescentar o ‘musicais’ a nossas glórias”, diz Genin Guerra.
Coincidência musical, Bordalo Pinheiro viveu um tempo no Brasil e foi o ilustrador da capa de uma partitura de Chiquinha Gonzaga em 1877. O preâmbulo Solos no livro, complementa Guerra, diz respeito tanto à terra quanto à ação solista do músico com seu instrumento. Por fim, acaba remetendo também à habilidade dele com a cerâmica e outros materiais.
Para acompanhar as imagens das 44 peças em cerâmica que Genin Guerra dedicou aos artistas no livro, de tamanho médio de 30 cm x 50 cm, ele convidou diferentes pessoas para escrever textos sobre os agraciados. O resultado, organizado em sequência alfabética nas 156 páginas, é um mosaico interessante de biografias e impressões acerca dos compositores, cantores e instrumentistas. Alguns apenas letristas notáveis, como Vinicius de Moraes, Paulo César Pinheiro e Fernando Brant.
Nesse rol de autores dos textos que acompanham os personagens, estão músicos profissionais e amadores, jornalistas, publicitários, professores, pesquisadores e conhecidos colegas caricaturistas do autor, como Eduardo Baptistão (escreveu sobre Roberto Carlos) e Renato Aroeira (abordou João Gilberto). Entre outros famosos estão Samuel Rosa (escreveu sobre Milton Nascimento), Sérgio Santos (Paulo César Pinheiro) e o violonista Juarez Moreira (Tom Jobim).
Como toda lista, alguém poderia apontar ausências importantes, mas Genin Guerra, um apaixonado e conhecedor da música popular, lembra que os nomes compõem seu “apreço afetivo”. No total, as peças somam 10 anos de trabalho em torno da imagem dos artistas homenageados. E ele diz já ter mais 14 peças feitas depois do livro lançado, em outubro passado. “Na exposição oficial estarão todas essas também”, informa.
Nessa nova fornada estão, por exemplo, Edu Lobo, Lamartine Babo, Dona Ivone Lara e Vander Lee, estes dois últimos mortos há poucos anos. O lançamento oficial, prejudicado pela pandemia de coronavírus, segue aguardando melhoria desse cenário, mas Genin Guerra diz que já busca local que possa abrigar a exposição das peças com apresentações musicais.
Cora Coralina
Genin Guerra tem uma ligação inesperada com Goiás. É dele o busto em bronze de Cora Coralina, exposto na entrada do museu da poetisa vilaboense. Ele conta que a peça foi uma homenagem que fez a pedido de dois irmãos ativistas culturais de Pará de Minas.
João André Peixoto e Fernando Peixoto criaram na cidade o projeto Muro dos Poetas, usando o muro da casa da família. Todo ano, desde 2002, destaca-se ali um poema ou trecho de um poeta ou letrista brasileiro e organizam-se saraus em torno da placa da vez. Por lá já foram homenageados Drummond, Adélia Prado, Mario Quintana, Chico Buarque e vários outros.
Na vez de Cora Coralina (1889-1985), a filha da poetisa esteve no local e gostou do busto que Genin Guerra fez para os irmãos. Ela acabou ganhando uma réplica em bronze, que está no Museu Casa da Cora Coralina, na Cidade de Goiás. No livro de Guerra, os irmãos assinam um texto sobre Gonzagão. João André faleceu em março deste ano, aos 61 anos, vítima de câncer. O irmão Fernando segue com o Muro dos Poetas.
Fantástico as imagens e texto. Parabens
Conhecer o Genin foi uma coisa extraordinária que a poesia nos proporcionou. Sem ele o Muro dos Poetas não teria a leveza em suas placas.
Excelente matéria.
Um livro para ver e ouvir. As fotos das caricaturas de cada página nos saltam aos olhos e os textos nos fazem ouvir as obras de cada compositor retratado, nem que seja na memória.