O filme Meu amigo Nietzsche (2012), de roteiro e direção de Fáuston da Silva, trouxe ao cinema brasileiro uma mensagem provocativa e ao mesmo tempo inovadora. Embora vejamos nessa produção de curto orçamento um elenco de atores não consagrados, a história é de excelente qualidade, conduzindo-nos a uma reflexão acerca do imensurável potencial a ser descoberto dentro do universo filosófico-literário.
A história acontece numa cidade da periferia do Distrito Federal, quando o garoto Lucas, durante a volta da escola para casa, se distrai com a repentina brincadeira de aparar pipa e de repente encontra jogado num aterro de lixo o livro Assim Falou Zaratustra, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Numa crítica ferrenha ao analfabetismo funcional, o curta-metragem revela no início a dificuldade do garoto em ler as palavras, sob o risco iminente, segundo conta a professora, de ser reprovado. Após algumas tentativas frustradas de entender sequer o título da obra do pensador alemão, Lucas, prestes a se desfazer do livro, acaba sendo salvo pelo antiquíssimo recurso da dramaturgia grega do deus ex machine[1]. Somente com as informações valiosas do catador de papel, o garoto consegue mergulhar no perturbador mundo da filosofia.
Aproximando o filme ainda mais das reflexões nietzschianas, diríamos que a personagem Lucas seria, no decorrer da história, comparado ao processo de metamorfose do espírito, encontrado na primeira parte sobre “Das três metamorfoses” de Assim falou Zaratrusta – no instante em que “o espírito se torna camelo, o camelo se torna o leão e o leão se torna a criança”. Para entendermos bem essa simbologia, é preciso saber que, para Nietzsche, o camelo significa aquele indivíduo que de maneira obediente suporta o peso da tradição, como as obrigações corriqueiras do dia a dia. Assim como qualquer outro garoto, Lucas precisava se enquadrar às determinações do mundo, exemplo disso era a obrigação de ser um bom aluno e de acompanhar sua mãe à igreja.
Diferentemente do camelo, o leão se sente farto de todo esse enquadramento social, por isso o segundo passo da metamorfose tem a ver com o rugido leonino da negação. Não a tudo! Embora considere relativamente difícil identificar uma negação contundente em qualquer uma das cenas, de todo modo as releituras do livro, acompanhadas das indagações do garoto, despertaram na mãe a suspeita de um filho que já se recusava à inserção obediente aos valores da tradição. “Mãe, Deus está morto?” Pergunta não menos inocente, quanto perturbadora, tornando-o um sério suspeito, como qualquer outro espírito inquieto ao suspeitar da origem dos seus costumes.
A metamorfose se conclui no reconhecimento do protagonista de seu próprio poder criador despertando o espírito da criança; a criança que se descobre como criança: o desejo de se tornar um “super-homem”; a incitação aos outros meninos da escola a despertarem suas potências; o reconhecimento do amor quando dito à mãe tratar-se de um sentimento para além do bem e do mal. Enfim, o desfecho comprova o amadurecimento alcançado pelo menino, graças à leitura completa da história, pois, segundo as palavras da professora: “Ele não é mais um menino. Ele é uma dinamite!”
A despeito das críticas pela ousadia de aproximar um jovem da periferia de Brasília de um pensador alemão do século XIX, vejo na direção de Fáuston da Silva um trabalho excepcional. Afinal, é marcante no sentido de nos fazer pensar o quanto o ensino brasileiro nos deve até hoje um convincente projeto educacional, capaz de formar verdadeiros cidadãos. Sob o ensejo político, parece surpreendente pensarmos se realmente alguma criança poderia elevar-se mediante a leitura de uma obra literária encontrada num aterro sanitário. Ora, pergunto, como mensurar os riscos caso tivéssemos escolas e bibliotecas públicas em abundância e qualidade? E se livros como os de Nietzsche e Marx fossem facilmente encontrados?
Depois de assistir ao filme, passou a fazer mais sentido a razão pela qual alguns políticos da direita, de forma escusa, demonstraram empenho na luta pela aprovação da PL 867 (Escola sem Partido). Certamente, não apenas pelo combate ao discurso em defesa das ideias progressistas e da liberdade do professor em sala de aula, mas, principalmente, devido à clara preocupação com o surgimento de cidadãos perigosamente críticos.
Bibliografia
NIETZSCHE, F. W. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Filme: Meu amigo Nietzsche (2012, Brasil, direção de Fáuston da Silva) https://youtu.be/FroyMvgYfm0
[1]Recurso dramatúrgico já utilizado na Antiguidade, que consistia originariamente na descida em cena de um deus sobre o palco com a missão de solucionar arbitrariamente um impasse vivido pelos personagens.