Saímos, eu e minha mulher, de Goiânia para um descanso no Rio. As companhias aéreas fazem o que querem. Atrasam, remarcam, demoram a devolver o preço da passagem do voo que elas mesmas cancelaram. Não sei como os aviões não se chocam em pleno ar ou contra a terra com mais frequência, talvez a providência divina. Horas a fio esperando nos aeroportos. Chegamos ao Rio. A beleza daquela pedra, o Pão de Açúcar, me é de um impacto tão grande como da primeira vez que já não me lembro. Não a visitava quando lá residia, ela estava sempre magnífica de longe, bastava uma espiadinha. Custei. A descida redonda, o marzão, dia claro. O hotel, onde pernoitamos, a espera do transporte pela van no Santos Dumont conforme combinado via internet. Os minutos do horário estabelecido vão ficando pra trás. Será que caímos em algum golpe? Como confiar, os dias de hoje são medonhos. Mas o motorista chegou. Fomos 15 pessoas apertadas e aos solavancos por mais de três horas de viagem até Angra dos Reis onde esperamos por um táxi para mais um traslado por duas horas e meia.
Em Angra, praia cheia, filas imensas para passeios de lancha, escuna. Lanchas empilhadas em ferragens umas em cima das outras, pragmático, mas feio, se acreditamos em boa forma. Os pregões dos vendedores de tudo, gente tão trabalhadeira. Aqui e ali um sotaque dos hermanos tão turísticos. Jovens mochileiros, velhos que ainda não desistiram, poucas crianças. Conversas com o motorista do táxi. Dá uma de guia falando das cidades e paisagens. As usinas nucleares, duas em funcionamento, uma em construção. Como alguém teve a ideia de jerico de construir usinas nucleares em recantos paradisíacos, como em Angra, como no Pacífico? Vai lembrando da briga com os americanos, já que a tecnologia escolhida foi alemã. O Geisel é quem decidiu a parada. Com alguma prudência nas perguntas para sondagem, descobrimos que eles defendem as usinas, talvez sejam militares aposentados, o corte de cabelo é de reco. Quase se orgulham de abastecerem o Centro-Oeste com a sua energia nuclear. Há um observatório e um hospital, pergunto. Ah, sim, é pra fazer o controle da radioatividade, tudo criterioso. Redução de danos, respondo, sim, admite quase a contragosto. Olha as casas dos primeiros engenheiros da usina, eram alemães, diz ele que trabalhou na montagem da primeira. Tudo ainda bem conservado até na sua memória.
Cidadezinhas à beira da estrada me lembram da infância e dos meus pés descalços pelas ruas. Paisagens do verde, pedras e árvores, aqui e ali uma criação pouca. Paisagens que insistem nos meus sonhos. Uma alegria calma vai mudando meu cansaço de viagem. Pronto, chegamos no ponto em que saímos do asfalto e começamos a subir estradinha de pedra e chão. Mais 40 minutos. Na volta, demos carona a uma senhora moradora local que disse que todo dia fazia aquele percurso a pé ida e volta do trabalho. Menos pra carregar as compras do supermercadinho.
Chegamos. Silêncio. Bem-recebidos. Namastê. Construções de madeira toda trabalhada, talhada a mão, e de encaixe ou de parafusos em toras bem sólidas, escuras. Tiramos os sapatos, bem-estar e aquela ideiazinha besta de que você se cuide dos fungos. Ar puro como o de Miguel Pereira. Estávamos entre o mar e a montanha e a montanha era mágica com aquela neblina em pleno dia de sol. Água tirada de fontes. Três cachoeiras. Uma grande propriedade onde se construíram templos, área de camping, de quartos para hóspedes, salão de refeições, área de estar com serviço único para internet. Só um lugar, e nada de televisão, música alta, barulho, com exceção de algum ruído dos rituais. Um sino te chama para almoço e janta. Um chofar te convida de madrugada ou em certos horários do dia para cerimônias religiosas. Um guru de 80 anos traduz passagens de sânscrito transmitindo a sabedoria do Bhagavad gita durante duas horas para seus discípulos em silêncio. Em seguida, ele se levanta sem aparente dor no corpo e toca tambor em frente a um altar mantendo sua postura ereta como a de um militar por mais um tempo que deixei de marcar. Sentamos no chão e logo veio alguém que nos dá almofadas.
Olhe para o alto. A montanha e sua neblina. Em frente, a Mata Atlântica nos cerca. Para baixo, o mar. A área mais próxima está plantada pelos donos da pousada, folhagens variadas, muita flor, e aquela saúde que vemos nas plantas tratadas com carinho. Pássaros, beija-flores, um deles caiu a meus pés enquanto atendia um analisante. Pois é, vantagens do on-line, férias e trabalho numa boa. Mas também algumas surpresas. Tive de interromper o atendimento porque passava um grupo Hare Krishna cantando e tocando tambores com aquela alegria que todos conhecem. O grupo era puxado por um guru norte-americano também idoso e com um chapéu de flores na cabeça. E que percorre o mundo, viajando, viajando, tocando e cantando. O beija-flor desviou minha atenção, será que vai morrer, dizem que de ataque cardíaco por conta de sua velocidade, não para quieto, só quando suga a flor, será que pegou covid, ficou um tempo até que se recuperou, saiu voando e pousou num galho de árvore. Interpretar signos? Estou de férias também. Nem tudo é interpretável.
Minha mulher queria visitar a cachoeira mais alta, mas no meio do caminho não tinha uma pedra e sim um arbusto derrubado por formigas em correição. Muitas. Eu ainda tentei argumentar, vamos dar um pulo por cima e seguir em frente. Nada disso, disse que não ia pular de jeito nenhum, vai que a gente escorrega e ainda sai empolado dessas formigas. Tá bem, tá bem. Fomos pra segunda cachoeira. Chegaram os jovens acompanhados do professor de ioga, um cara forte, musculoso, todo tatuado , de barba e careca. Ele subiu por uma corda até o alto de uma pedra a mais ou menos cinco metros de altura. Depois mergulhou nas águas geladas e nadou até os jovens parados, que estavam tremendo de frio. Vamos gente, dá um mergulho, vamos nadar, conclamou. Aos poucos os jovens foram se mexendo e conversando, disseram que também tinham tentado o caminho da primeira cachoeira, mas deram a volta por causa das formigas. O professor de ioga disse que no ano passado teve de levar uma moça às pressas de carro até Paraty onde foi hospitalizada, o corpo todo empolado, vermelho. Minha mulher estava certa.
Ela me contou que quando as pessoas me viram escalando a corda até o topo da pedra ficaram de boca aberta e mais uma vez paradas. Eu cá comigo pensei que se o professor de ioga subiu, se um Hare Khrisna de rabo de cavalo curtinho e de saiote – não sei como se chama o pano que os envolve – também subiu, bom, sinal de que a corda era forte, não ia rebentar com meu corpinho. Sem drama, cheguei lá em cima, e o Hare Khrisna eslovaco – ele era eslovaco – me perguntou jump? Se eu ia pular, e quantos anos eu tinha. É, tá bem, e mais uma vez as pessoas me põem a pensar na velhice (a Organização Mundial da Saúde cravou: velhice é doença. Depois recuou. Parece hipocrisia. A ver.) De uns tempos pra cá sou tratado como quase uma atração circense, embora já me tenha acostumado com as idealizações que sempre me acontecem na direção da subestimação. Por um triz, elas quase me convenceram. Por via das dúvidas, no jump. É nessas horas que me dá um mareo e me saio a caminhar.
Todos devidamente vacinados. Fila na hora da comidinha vegana ou vegetariana. Detox da barriguinha. Que peles, gente jovem, forte e bonita criada há 20 gerações nos divãs de veludo da vida. Simpáticos, acolhedores, calmos, esbanjam saúde. Ainda que haja controvérsias entre os mestres sobre quem é mais ioga, se os hatha, mais calmos, ou se os ashtanga, pauleira, mais para jovens que põem aquelas pernas maravilhosas por cima dos ombros num contorcionismo de matar, o efeito nos seus corpos é visível em bem-estar e beleza, no mínimo agradável nem que seja apenas para os meus olhos já tão cansados de ver.
Disciplina na hora do rango. Cada um se serve. Ao final, cada um despeja seus pratos, garfos, copos e restos em lugares marcados, inclusive as crianças. Que tal a comida, me perguntam os donos da pousada, respondo que nem parece comida vegana, e a dona diz que considera um elogio e eu me vejo tendo de explicar a piada por uma conversalhada sobre estereótipo da crítica-padrão às comidas alternativas e eles riram não sei se forçado, mas eu lhes disse que pelo menos fiz minha mulher sorrir. Tapinhas nas costas, comemos e bebemos muito bem.
Na sala de estar ficam os jovens conversando, cantando, com celular e laptop, pois é o único lugar que pega internet, que cai adoidado. Paradise? Nirvana com sorvete? Não exatamente, tem mosquito, e muito, tipo maruim, ou porvinha no popular goiano. Não deu tempo de ver outras mazelas, pero que las hay, humanos que somos. O que me chama atenção é que as formas de vida estão sendo reinventadas a olhos vistos, pouco importa se no âmbito religioso de milenar tradição oriental, pela valorização da espiritualidade. Longe dos fanatismos negacionistas. Alguma sabedoria e bem-estar já, ainda que para poucos. Teremos o talento de ampliar o campo do possível?
De volta à cidade do Rio, minha terra, minha canção do exílio. Outro cenário. Hotel perto do Santos Dumont, muitas advertências, desde o motorista de táxi, cuidado à noite com os moradores de rua que se multiplicam a olhos vistos. Muita sujeira e miséria nas ruas em meio à opulência das pessoas e à beleza da paisagem. Doidos varridos, quase todos pretos, ou quase pretos, quase todos pardos, todos pobres e magros de fome vagueiam pelas calçadas imundas gritando em surtos para ninguém. Mulheres imensas de obesidade com filhos pequenos no colo insistindo “moço, moço”. Mas a praia democratiza tudo. Nosso Rio Ganges. Purificado só estou se mergulhar de cabeça no mar, cuidado com a correnteza que tá puxando, mar forte, não dá uma de mineirinho que não sabe nadar, depois se afoga aí, carioca, atrapalhando o tráfego do sábado. Nada disso, mané. A água de coco tá lá, e a invenção dos vendedores na criação de gatilhos para molhar seus pés com as trilhas de gotejamento abrandando o fogo das areias. Andar descalço na areia dura de beira de praia. Esse povo me lembra as moças vietcong fazendo brinquinho das fuselagens dos aviões americanos abatidos. Ou as velhas senhoras de biquíni no Leme, nem aí para o falatório (que já nem há mais).
Caminhar no calçadão em frente ao Copacabana Palace e sua estátua em homenagem a Ibrahim Sued, jornalista, chamado de “Turco” por muita gente boa que começou a vida profissional trabalhando com ele, como Elio Gaspari, contemporâneo desde os tempos da Faculdade Nacional de Filosofia, a FNFI. Quantas vezes vão roubar os óculos da estátua de Drummond? Será que vão afanar a bandeira do Ayrton Senna? Roubar a estátua de Tom? Me despeço da cidade pelas pedras que vejo da praia, da Gávea, Dois Irmãos, entre mares e montanhas.
De volta a Goiânia, cidade-bebê comparada às quatrocentonas. A gente envelhece e nosso cemitério vai crescendo, dizia um velho amigo, que também já morreu. Fico eu aqui, na estreita abertura por novos amigos, envelhecendo devagar até que a indesejada das gentes cumpra seu destino. Flor-de-ir embora/ é uma flor que se alimenta do que a gente chora/Rompe a terra decidida/Flor do meu desejo/ de correr o mundo afora/Flor de sentimento/Amadurecendo aos poucos a minha partida/Quando a flor abrir inteira/Muda a minha vida/Esperei o tempo certo/E lá vou eu/ E lá vou eu/Flor-de-ir embora eu vou/Agora esse mundo é meu, como canta Fátima Guedes. Como canta a Fátima Guedes!
Turista? não, viajante das paisagens e das gentes. Parabéns Roberto.