Se houve uma coisa muito poderosa que as sociedades europeias souberam fazer para se erguer como civilização, com técnicas e discursos defensivos refinados, foi a arte de roubar. E roubaram de tudo e de todas as formas. Roubaram “biblicamente”, roubaram simbolicamente, roubaram culturalmente.
Na Idade Antiga, o Império Romano do Ocidente escravizou muitos povos, incluindo gregos (como o filósofo Epicteto), e tomou para si a linguagem da poesia, filosofia e mitologia helênicas. Neste caso, ainda fizeram de modo a parecer que fora só uma partilha, a divisão de espólios de uma Grécia agonizante.
Na Idade Média, em nome de Deus, os europeus realizaram cruzadas que invadiram o Oriente Médio e saquearam vilas, estupraram mulheres e crianças (roubaram-lhe a dignidade e a vida), enquanto pilhavam seus bens materiais (objetos, comida, animais, armas) e imateriais (conhecimento, ideias, receitas).
Na Idade Moderna, descobriram a América, ao mesmo tempo em que se voltavam para a África, mas aí, como chacais, a invasão foi geral. No Novo Mundo, não sobrou pedra sobre pedra. Junto com espanhóis, ingleses e franceses, mataram os indígenas e roubaram suas terras.
Da África, os portugueses espalharam a notícia e começaram a pilhar o Oeste Africano ainda no século XV, escravizando pessoas, levando-as para as Américas. Pouco depois, já havia as Companhias das Índias Ocidentais, sob o comando da Holanda.
O comércio de escravizados foi crescendo e rendendo muito lucro a esses homens iluminados e brancos. Enquanto no Novo Mundo mantiveram “corpos roubados cultivando terras roubadas” (para citar um romance de Colson Whitehead), nos séculos XVIII e XIX, os grandes impérios europeus invadiram a África inteira e a lotearam entre si.
Foi quando o roubo dos objetos culturais começou de verdade. Se você acha que a rapinagem que fizeram se assemelha a alguém levando uma televisão debaixo da saia, um cabide no bolso, ou uma picanha sob o boné, equivoca-se.
Segundo a historiadora francesa Bénédicte Savoy, especializada em análise crítica e histórica do destino das obras de arte, as nações europeias modernas, ao longo de dois séculos de exploração, saquearam mais de meio milhão de peças das diversas culturas africanas.
Monopólio europeu
Em 2021, ela publicou em alemão o livro Afrikas Kampf um seine Kunst Geschichte einer postkolonialen Niederlage, traduzido este ano para o inglês, intitulado Africa’s Struggle for its Art – History of a Postcolonial Defeat (“A batalha da África por sua arte: história de um desmonte pós-colonial” – em tradução livre).
É neste livro que Bénédicte faz um levantamento impressionante e narra a luta dos africanos para reaver sua riqueza cultural. Ela aponta que o Museu Britânico (de Londres) possui em seu inventário 69 mil objetos de países da África subsaariana, que inclui o Oeste africano.
Só dessa região, vários outros museus europeus mantêm acervos escandalosamente volumosos. O Weltmuseum, de Viena (Áustria), tem 37 mil peças. O Museu Real da África Central, de Tervuren (Bélgica), é dono de 180 mil objetos.
E a lista continua. “O Museu Nacional das Culturas Mundiais, complexo museológico de várias cidades da Holanda, possui 66 mil peças africanas. O Museu Etnológico, de Berlim (Alemanha), tem 75 mil objetos, e o Museu do Quai Branly-Jacques Chirac, em Paris (também conhecido como Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas), é dono de quase 70 mil peças”, diz Bénédicte Savoy.
Bénédicte é professora de história da arte moderna na Universidade Técnica de Berlim (Alemanha) e de história cultural da arte europeia do século XVIII ao XX, no Collège de France, em Paris.
Além desses números referentes aos museus, há outro levantamento sobre “instituições regionais, militares, universitárias e missionárias – de Oxford ao Vaticano, passando por Le Havre, Lyon, Stuttgart ou Leipzig – que possuem outras dezenas de milhares de objetos da cultura africana”.
E só estamos falando da África subsaariana. O Egito (ó, pobre Egito, o que ainda resta de ti, além do esqueleto das pirâmides?) fica fora dessa contabilidade, mas não da pilhagem.
Com isso, o que temos é um monopólio europeu da representação africana. Quando um país africano quer realizar uma grande mostra de arte originada na tradição de seu próprio povo, precisa recorrer aos colonizadores.
Foi o que aconteceu em 1966. Senegal realizou o 1º Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, em Dacar, com peças da África emprestadas de instituições europeias e americanas e coleções particulares. É como se alguém pedisse só por um tempo sua alma e sua história para quem as roubara.
Em 1969, a Argélia (Norte da África) realizou o 1º Festival Cultural Pan-África e, para conseguir peças que representassem as diversas culturas do continente, teve de pedir objetos emprestados de museus da Bélgica, França, Suíça e do Reino Unido.
O documentário de curta-metragem You hide me (“Você me esconde”, disponível no YouTube), de 1971, dirigido pelo então jovem cineasta ganês Nii Kwate Owoo, já dizia que a maioria absoluta das peças estava guardada a sete chaves nos sótãos desses museus, inacessíveis aos africanos e aos próprios cidadãos europeus apreciadores de arte.
A Rainha-Mãe Idia
De vez em quando, esses objetos são enviados para um tour de mostras em museus e galerias mundo afora – como o Metropolitan, em Nova York –, expondo uma série de composições de diversas culturas africanas com funções de funeral, liturgia religiosa e relações maternais. Esse giro começou principalmente depois que os africanos começaram a reivindicar sua herança de volta.
Entre milhares de peças, há, por exemplo, uma máscara da Rainha-Mãe Idia, do século 16 – “delicadamente esculpida em relevo de marfim”. Historicamente, o filho de Idia, Oba Esigie, fora “um dos mais poderosos reis de Benin” (território fragmentado pela divisão colonial, tornando-se um país fronteiriço da atual Nigéria e uma cidade de mesmo nome em território nigeriano).
A peça preciosa foi violentamente saqueada da cidade de Benin pelas tropas britânicas em 1897. Hoje, ela pertence ao Museu Britânico, que inclusive fez uma cópia dela, em 1977, por ocasião da Festac ’77 – 2º Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, evento grandioso que contou com a participação de artistas e intelectuais negros da África, Europa e Diáspora africana, incluindo os brasileiros Gilberto Gil e Abdias do Nascimento.
Na ocasião do saque, a máscara da Rainha-Mãe Idia foi levada junto com outras centenas de objetos, muitos dos quais logo vendidos na casa de leilões Stevens Auction Rooms, fundada em 1831 e considerada até hoje “um dos maiores points de encontro mundiais de quem procura por espécies naturais e etnográficas”.
Desde a década de 1960, período de independência, as nações africanas vêm tentando recuperar suas obras, valiosas não apenas do ponto de vista estético, mas também espiritual, filosófico e cosmogônico. Nada, porém, é fácil ou simples.
Um exército de críticos e tomadores de decisão das instituições europeias reagiu à tentativa diplomática dos países africanos de recuperarem seu legado. Empregam termos como “universalismo” para dizer que se trata de um patrimônio universal.
Ou defendem que os museus estão conservando as peças de arte melhor do que a “barbárie africana” seria capaz de fazê-lo. Tanto é que um dos termos usados para dizer que determinado museu retém um objeto de arte é “conservar”, tipo, “a peça está conservada no museu tal”.
Além disso, são pródigos em se autointitularem autoridades na hora de “decidir que objeto é ou não é obra-prima da arte africana”, embora desde o fim do período colonial (no intervalo chamado pós-colonial), essas referências de poder venham sendo modificadas.
Segundo críticos pós-coloniais, vivemos agora um momento de decolonização, tempo de derrubar não só as estruturas coloniais, mas também o pensamento que sustenta essas estruturas, dentro das quais foram fomentados e fermentados o racismo, o machismo e a LGBTfobia.
Para ficar no básico, porque, embora possa atravessar e atravessa a todos nós, tudo quanto é tipo de gesto e sentimento que não presta é valorizado pela estimada gente que defende as estruturas patriarcais do colonialismo, inclusive a morte em detrimento da vida (dos outros, obviamente, e os outros, quem somos?).
A (in)capacidade de julgar
O “prodígio” dessa autoridade demarcadora de valores estéticos e culturais pode ser visto no exemplo dado pelo jornalista David Remnick, editor-chefe da revista The New Yorker, em reportagem da edição de 19 de fevereiro de 2022, intitulada “How Henry Louis Gates, Jr., helped remake the literary canon” (“Como Henry Louis Gates Jr. ajudou a refazer o cânone literário” – em tradução livre).
Nessa reportagem, Remnick traça um perfil de Gates mostrando sua estupenda qualidade de pesquisador e intelectual afro-americano formado em Yale, que ganhou uma bolsa de doutorado em Cambridge, Inglaterra, em 1973, tendo entre seus professores o nigeriano Wole Soyinka (que viria a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1986).
Disposto a estudar literatura africana, chegando lá, Gates descobriu que Cambridge não considerava haver literatura de fato na África, e por isso o que “se parecia com literatura” era estudado no departamento de antropologia (numa época em que Chinua Achebe já tinha publicado O mundo se despedaça, em 1958).
Gates, então, quis voltar, mas Soyinka lhe sugeriu fazer estudo comparado entre literatura afro-americana e africana. E, aí, deu tudo certo. Hoje há um mestrado em Estudos Africanos no Clare College, em que a literatura africana pode ser pesquisada e analisada como tal.
A crítica sobre essa (in)capacidade de julgar dos europeus vem subindo de tom nos últimos tempos. Isso ajuda a África a legitimar sua arte e a reivindicar seus tesouros saqueados de volta.
Alguns países africanos, inclusive, já construíram museus com especificações internacionais (nem precisavam, afinal, a máscara de Idia permaneceu conservada quase 400 anos em seu próprio lar) para satisfazer a exigência da expertise europeia.
Mesmo com a construção desses museus, segundo Bénédicte Savoy, os pedidos diplomáticos de retorno das centenas de milhares (quiçá milhões) de peças africanas surtiram pouco efeito desde o fim da colonização, a partir de 1960.
A segunda onda de tentativa de resgate começa agora. Os países originários substituíram a diplomacia por uma série de outras alternativas.
Entre as novas abordagens de recuperação, estão “a recompra de objetos valorizados no mercado internacional, a organização de mostras itinerantes espetaculares [que chamem a atenção do mundo] e a produção de documentários”.
Os casos de devolução
Nos últimos anos, vemos reportagens que mostram tímidos gestos de países europeus para a devolução de algumas peças. A Alemanha parece ser um dos mais engajados nessa empreitada. Trata-se de boa vontade, ou política de consciência, mas não significa que o Estado alemão tenha sido o mais jeitosinho na história da colonização.
Ao dominar a região que hoje é a Namíbia, o exército alemão travou uma guerra contra o povo herero e matou 80% da população em quatro anos, entre 1904 e 1907. Política de genocídio. A Tanzânia também foi colônia alemã até 1918, quando o voraz império Britânico a tomou pra si, e também tem histórias para contar (que não serão contadas aqui, obviamente).
Em 1978, o jornal alemão Die Welt já pressionava a Europa para devolver os objetos da cultura africana, enquanto outros países europeus procuravam criar pautas que defendiam, com eufemismos, os saques.
A reportagem do Welt se intitulava “O Museu Etnológico – covil de ladrões?”. Segundo Bénédicte Savoy, o texto “afirmava que a Europa não podia mais ignorar a demanda de restituição feita pelas ex-colônias”.
Nos últimos anos, várias reportagens foram publicadas em português tratando desse assunto. A revista eletrônica Nossa UOL, por exemplo, abre seu texto de 23/11/2021 dizendo:
“O Metropolitan Museum de Nova York devolveu à Nigéria, na segunda-feira (22), três obras de arte que foram saqueadas no século 19, em um momento em que os museus estão fazendo esforços crescentes para repatriar tesouros estrangeiros.” Esses objetos provavelmente foram comprados pelo museu num dos leilões da Stevens Auction Rooms, ou em qualquer salão em Paris, Amsterdã, Bruxelas etc.
Também em 2021, o alemão Deutsche Welle, publicado em português (DW Brasil), abriu uma reportagem sobre o tema afirmando o seguinte:
“Contando até 500 anos e com caráter fortemente simbólico, cerca de mil bronzes de Benin se encontram em museus alemães. Sua devolução deve marcar uma guinada no processamento do passado colonial europeu da África.”
Veja que os números apresentados no livro de Bénédicte Savoy são bem maiores, contando todo tipo de matéria-prima. Como já disse, só o Museu Etnológico conta com 75 mil objetos.
Uma reportagem muito bem apurada foi publicada em 2018 na BBC Brasil, escrita pela jornalista queniana Ashley Lime, intitulada “Os tesouros ‘roubados’ da África que foram parar em museus da Europa e dos EUA”, em que ela faz uma descrição criteriosa de vários itens.
Entre as peças valiosíssimas listadas por Ashley estão a Pedra da Roseta, do Egito (que hoje se encontra no Museu Britânico), a escultura Rainha de Bangwa, de Camarões (Museu für Völkerkunde, em Berlim), uma coroa de ouro de Magdala, Etiópia, saqueada pelos britânicos em 1808 (Museu Victoria and Albert, Londres), águias esculpidas em pedra-sabão, do Zimbábue (Museu Etnológico de Berlim, mas algumas já foram devolvidas em 2003).
Há também os Leões de Tsavo, região do Quênia, mortos pelo engenheiro britânico John Patterson, em 1898, porque estavam devorando trabalhadores da construção de uma ferrovia. Os leões foram empalhados por Patterson e, em 1925, foram vendidos para o Museu Field de História Natural, de Chicago (EUA), onde estão até hoje.
A quem possa interessar, essa história dos leões virou filme com Val Kilmer e Michael Douglas, em 1996, A sombra e a escuridão, roteirizado pelo premiado escritor e roteirista americano William Goldman.
Além de tudo isso, a história da arte também conta sobre o quanto grandes artistas europeus da primeira metade do século XX, como Henri Matisse e Pablo Picasso, revolucionaram as técnicas das artes visuais a partir das artes africanas, das máscaras, das esculturas de madeira e do cuidadoso exame das técnicas originárias.
A África é uma fonte inesgotável de cultura, e não vai deixar de sê-lo. Mas os africanos querem suas peças de volta, querem recontar sua história por si mesmos, querem exibir sua riqueza simbólica com seus próprios cenários e curadorias, expor e explicar os tesouros de suas raízes profundas pelas próprias línguas, pelo orgulho de serem o que foram e o que serão.