Quando chegaram aqui pra tirar esta cidade do papel do Atillio e botá-la no chão, o que quebrava ou sobrava juntavam e levavam pra Marreta. A Marreta existe antes de Goiânia e existirá depois dela: todo estilhaço do maior dos prédios ao pedaço do parafuso é devir Marreta. Talvez, dada a velocidade estonteante do colapso do urbano, mesmo este nosso tão rural, agorinha mesmo enquanto escrevo a Marreta se expande feito aqueles esquemas da física quântica.
Isso pra não falar que se de cá temos a Feira da Marreta, o Rio inteiro, em todo meio, tem Shopping Chão, e São Paulo não no centro, mas em seu extremo, tem a Feira do Rolo. E não é difícil observar que há uma conurbação incessante, destas e tantas mais cidades, pelos seus restos, quebras, sobras, partes e partículas de algo que já foi mercadoria e agora alguém num espaço-pacto coletivo ousa reinventar e reinseri-lo como mercadoria. Para cada resto, reivindica-se algum valor de troca.
A sociedade que produz incessantemente mercadoria e depois as descarta em pedaços cada vez mais velozes é devir Feira da Marreta. A obsolescência programada de cada coisa encontra um contragolpe ousado e irreverente no espaço da Marreta.
Cada pedaço de chão, uma barraca. Do amanhecer do domingo ao começo da tarde, nos arredores da Pecuária faz-se o milagre: pedaço de fio à venda. E é pela soma da cada coisa com sua mágica condição de despedaçado que surge a barraca de pastel, de sarapatel. É por conta do pedaço de perna de cadeira à venda que vem o moço com suas sólidas e lindas mesas de madeira. É a soma dos restos que traz todos os demais gestos e objetos.
Mora ainda neste espaço-tempo do dominical matinal do marretar interstícios sutis entre o legal e o ilegal. E dada a violência da propriedade é nisso que a Feira da Marreta é (re)conhecida. Mas o que se vende depois de ser roubado é uma partícula pequena do mar de pedaços, estilhaços, fragmentos desesperados para voltarem à condição de algo que alguém tem.
A maioria das coisas que está à venda não funciona. O quebrado oferece sua utilidade prático-poética expositiva. Certas vezes alguém aposta que este ou aquele objeto pode ressurgir em estado de uso. Se os parasitas do mercado apostam em papéis abstratos, por que não apostar na ressurreição do uso de uma torradeira de pão, mesmo que esteja à venda só uma parte dela?
Pedaço de fio de telefone, máquina de escrever quebrada, máquina de secar cabelo, pedaço de máquina de escrever que pode ser usada para secar cabelo: o rapaz da banca conta e explica como faz. Sapato usado e sem usar. Tem os que vêm em pares, mas facilmente se encontra os que são pé só.
No chão, em meio à imensidão da miríade de coisas, me deparo com o Renascimento italiano de Piero Della Francesca em Encontro das três cruzes e A ressurreição de Cristo. Insisto: no chão. E por cima uma tomada com fio desencapado mistura-se a uma furadeira enferrujada, provavelmente quebrada. Mais atrás nota-se um pedaço de chuveiro sem tampa, fios expostos. Há dois ou três discos de vinil, todos sem capa. Cortados ao meio na imagem. Os fios verdes e vermelhos, também cortados na imagem, parecem ser inteiros e têm o aspecto da coisa mais nova de todas que aparecem na foto. Nota-se, pouco atrás do disco, uma cabeça de martelo enferrujada e sem cabo. Junto um alto-falante arrebentado, uma panela muito enferrujada (como seria usá-la pra fritar uma moela?). Um serrote, também enferrujado. A ferrugem é uma presença imanente na Marreta. Três potes de spray, duas ou três válvulas de gás de cozinha. O objeto que aparece na frente dele eu não sei qual é: trata-se de uma ferramenta ou de um pedaço de outro objeto ausente? Conto, ainda nesta mesma imagem, mais uma dezena de coisas, são pedaços ou são em si algo por inteiro? Além do livro, alguma outra coisa que está na imagem funciona? Desisto de tentar descrever tudo. E estamos diante de meros dois metros quadrados de uma feira que tem, sei lá, um quilômetro quadrado.
A Feira da Marreta é uma coleção de convites à invenção e à inversão do uso e da troca. Outra hora venho aqui e continuo este texto com mais pedaços deste conjunto, talvez uma tipologia, talvez botando em destaque coisas particularmente absurdas. Como seria selecioná-las em meio a tantos objetos dissidentes que favorecem a dissipação do entendimento do absurdo? Há absurdos absolutos?
Pensei também em fazer um texto listando tudo quanto é coisa que tem por lá: desisti. Seria maior que a bíblia. Seria a bíblia da sociedade da mercadoria decomposta.
Se um dia chegar um artista famoso, internacional e tal e dizer “isso tudo é uma instalação”, a Marreta vira uma Pavilhão, um Salão ou uma Bienal (semanal) de artes contemporânea?
Se a cidade de Goiás é patrimônio da humanidade, a Feira da Marreta é patrimônio da sociedade da mercadoria.
Oi Glauco! Prazer! Espero q esteja tudo certo.
Gostaria de sabe se vc toparia dar um parecer escrito (oficial) sobre o meu trabalho (tgi da geo da fflch) q versa sobre o futebol de várzea em sp. É algo bem simples, mas ficaria muito feliz se vc pudesse. Sua indicação veio do amigo Luis Fellin.
Meu email: andre.bevilacqua@usp.br
Meu telefone: 11994815767
Muito obrigado!
Abraço