O que você procura está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você estava nesse lugar quando estava em terra estrangeira, mas também estava nele quando estava em casa.
Joseph Fell
Logo vai fazer 20 anos que entrei na faculdade de filosofia. De lá pra cá, já escrevi um bocado de coisa. Dentre essas coisas, algumas foram lidas. Entre as que foram lidas, algumas foram comentadas. Entre os comentários, já ouvi que em meus textos eu menciono bastante – que talvez eu mencione demais – pessoas que conheço pessoalmente. Acho que talvez isso pareça um pouco estranho porque minha formação se deu longe dos grandes centros acadêmicos, nos quais muita gente já é meio célebre e notória simplesmente por estar neles, grandes centros nos quais parece ser de bom-tom mencionar nominalmente os mais notórios. Assim, em meu narrativismo, vou transmitindo e espalhando, por onde passo, algumas histórias sobre as personagens envolvidas em minha formação intelectual. Este texto é sobre uma personagem dessas histórias e pretende, também, ser uma homenagem.
Lembro como se fosse hoje: era a primeira semana de março de 2004. Aula de Introdução à Filosofia. Não tenho (nem quero) ter certeza, mas acho que foi a primeira aula da primeira semana de aulas daquele ano no departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Quarenta pessoas em uma sala de aula de um prédio das ciências naturais e exatas, pois a filosofia ainda não tinha, no campus da UFSM, moradia própria entre as sociais e humanas. Lembro do entusiasmo de muitas dessas pessoas nessa primeira semana de aula. Não era em sua maioria uma turma formada só por gente que, como eu, tinha apenas 18 anos (ou como a professora Lauren Nunes, da Unipampa, que tinha então só 17 anos). Tinha gente mais velha que nós, já com seus 20 ou 30-e-poucos anos, algumas já na casa dos 40. Tudo isso tornava aquela turma ainda mais especial e única, como tendem a ser as turmas dos nossos primeiros anos de faculdade.
Naquele dia ensolarado, o professor teve a generosa, generosíssima, arquigenerosa ideia de nos perguntar o que havia nos motivado a estar ali. Muitas respostas incluíam a leitura de O mundo de Sofia. Quando chegou a minha vez, tive que dizer que, além do clássico infantojuvenil de Jostein Gaarder[1], também contribuiu para a minha entrada no curso, vejam só, a leitura da obra (de toda a obra publicada até o verão de 2002/2003 e disponibilizada pelo próprio autor, em PDF, por algumas semanas, em seu site pessoal) de Paulo Coelho. Com a generosidade dos sábios, o professor sorriu e me deu as boas-vindas. O nome desse professor é Marcelo Fabri.
Talvez eu repita muitas vezes a palavra “generosidade” neste texto, mas é em nome de uma impressão fortíssima, quase uma convicção: por mais diversas e excelsas que possam ser as capacidades e habilidades de um professor, na base de todas elas está a generosidade na transmissão. Transmissão, como se diz na psicanálise e na epidemiologia. Porque filosofia é uma coisa que se transmite, e você só pode contrair filosofia por meio do contato filosófico com algo ou, principalmente, alguém que esteja contaminado de filosofia. Nesse sentido, preciso dizer que o professor Marcelo Fabri é portador de uma carga viral altíssima, capaz de transmitir filosofia provavelmente mesmo a contragosto, mesmo em circunstâncias eventualmente adversas, como em uma noite na qual falte energia no prédio todo, e a aula precise ser continuada no escuro. Quem assistiu às aulas do professor Fabri – quem assistiu a essa aula da noite escura, lá por 2007 –, no entanto, sabe que a escuridão meramente material não pode incidir sobre a presença desse professor. Especialmente se ele estiver em um contexto de transmissão de filosofia.
Acho que fui seu aluno em quase uma dezena de disciplinas. Ainda em 2004, descobri que o professor Fabri era especialista em um negócio chamado fenomenologia. Nesse primeiro ano, todavia, tive de decepcioná-lo: fui até o final da disciplina, mas não consegui entregar um trabalho final. Generoso, o professor mandou eu rascunhar, esboçar, rabiscar qualquer coisa em uma folha para que ele averiguasse o que eu (não) tinha compreendido. Naquele momento, não deu. Mas, depois me inscrevi novamente na disciplina de Ética e Fenomenologia. Já estava mais perto da conclusão do curso, já tinha lido uma coisinha ou outra e não só percebi que estava mais ou menos compreendendo a tal da fenomenologia quanto estava também gostando dela.
Na disciplina de História da Filosofia Contemporânea, com o professor Fabri, já me senti em condições e com entusiasmo o suficiente para apresentar um seminário sobre Sartre. Hoje acho que ele já pode saber que, assim como eu, aqueles meus dois grandes amigos (esses mesmos nos quais o senhor está pensando, professor; esses que, comigo, participavam daquela forma litigiosa de, naquela disciplina noturna, assinar a chamada pelos outros, ausentes, e, ainda por cima, tentando imitar as letras uns dos outros, achando que estávamos o enganando…), naquela ocasião, viramos a noite preparando aqueles seminários.
Aliás, aproveitando a menção aos momentos mais vexatórios, o que foi aquele meu trabalho em Filosofia da Religião, em 2005? O dissipar da ilusão religiosa à luz da psicanálise. Que com 18 anos, no primeiro semestre, em Introdução, o senhor tenha sido generoso com afirmações do tipo “separar filosofia e arte é como separar, artificialmente e por decreto, as águas dos oceanos” (eu não sabia nem ao menos que há fronteiras bem reais entre rios, entre mares, entre oceanos!) foi generosidade. Agora, aturar o mesmo guri, um ano depois, defendendo “o positivismo da psicanálise” e dizendo que “a religião estava com seus dias contados”, é mais, bem mais que generosidade. É uma mistura de paciência, bondade e um pouquinho de bom humor. Afinal, ou esses tipos como o que eu era se aprumam, ou saem da filosofia (ou, na pior das hipóteses, ficam nela como excêntricos, meio sem-mundo). Acho que com o tempo eu me aprumei um pouquinho, porque o professor Fabri topou orientar meu mestrado.
O título da minha dissertação de mestrado nasceu de um lapso do professor Fabri. Ele anotou Má-fé e psicanálise existencial em Sartre em seu currículo Lattes. Constatando a bobagem que era o título que eu havia originalmente concebido (e não interessa qual era), adotei a fórmula nascida do lapso e assim ela permaneceu batizada bem antes de nascer. Aliás, ela demorou a nascer. Só começou a dar seus sinais perto do fim dos prazos. Os dois anos do mestrado foram vividos por mim com a leveza de quem tinha o mais generoso dos orientadores na mesma época em que, graças às políticas de fomento e incentivo à pesquisa, pela primeira vez na vida, preciso confessar, tinha algum dinheiro para comprar livros e pagar o cafezinho do intervalo das aulas. Também nessa época é que a gente consolida, em algum sentido, uma autoimagem de pessoa dedicada ao mundo da pesquisa.
Nesse sentido, vejo com muita lástima as histórias eventualmente tristes sobre as relações dos estudantes com quem os orienta, pois não tenho uma só história desse tipo. É até com certo constrangimento que eventualmente relato, na maioria das vezes entre pares das humanidades, que as manhãs e tardes passadas nas salas dos meus orientadores sempre foram leves e edificantes. Com alguma frequência, visitei a sala do professor Fabri. Nesses momentos, pouco falávamos sobre a escrita da tese ou de papers. Eu compartilhava o que ia descobrindo e ele, do mesmo modo, expandia mais e mais meus horizontes de interesse e curiosidade, tendo sempre mais e mais sugestões de ampliação não só da burocrática bibliografia que compõe os textos acadêmicos, mas também daquele repertório de referências que, como dizia o filósofo Paul Ricoeur, dão a pensar.
Além da manutenção e da ampliação do precioso financiamento das pesquisas no Brasil, acho que uma das coisas que posso desejar para os meus pares mais jovens é que tenham a sorte que eu tive de ter orientadores que não só orientaram pesquisas, mas, permanentemente, inspiraram e seguem inspirando uma paixão, um modo de pensar e de viver, um modo de viver para o pensamento, um modo filosófico de viver. A expressão é piegas, mas preciso me servir dela: se desde Max Weber estamos bem avisados de que a vida nas universidades é metade especialização, metade burocracia e ainda por cima um pouquinho de resignação estoica, o professor Fabri permite que a gente não só imagine, mas também se experimente em uma aventura.
Por mais desprestigiada que eventualmente a vida intelectual possa parecer para boa parte de nossa sociedade, por menos excitante que possa eventualmente ser a imagem de alguém com a cabeça enfiada no meio de livros, papéis, fazendo anotações, quero acreditar que, em alguns cantinhos desse mundo que é a academia, existem legítimas trincheiras nas quais, como um alemão do XIX vivendo sua Bildung, egressos e egressas do ensino público possam ler textos de filosofia como se fosse uma genuína aventura. Esse sentimento de aventura é parte do que se transmite quando alguém passa o vírus da filosofia para outra pessoa. Sem pretender ser ingrato com outros mestres, devo em grande medida esse sentimento ao professor Fabri.
A história da minha orientação com o professor Fabri termina e não termina, com o meu mestrado, em março de 2012 – aliás, professor, algum ex-orientando seu conseguiu a proeza de citar menos do que eu a obra de Husserl? Shame on me! Levaria outros dois anos para que eu tivesse uma ideia para um projeto de doutorado. Quando voltei, lá estava o professor Fabri diante de mim, no primeiro semestre de 2014, dez anos depois, espalhando a velha boa-nova da fenomenologia. É verdade que troquei de orientador na época, passando a trabalhar com o professor Noeli Rossatto (e a vampirizar seus temas e sua bibliografia). Mas quem passou pela linha de pesquisa em hermenêutica e fenomenologia do PPG-Fil da UFSM deve lembrar bem do trânsito comum entre orientandos e orientandas de um professor nas disciplinas do outro, bem como a frequente presença de um nas bancas das pessoas orientadas pelo outro. Tudo estava em casa. Eu estava em casa.
Os anos passaram e os caminhos da liberdade jogam umas pessoas saracoteando daqui para acolá, como diz a canção do Chico. Mas a gente sempre carrega a própria casa nas costas e, mesmo bem recentemente, no sombrio período da pandemia, lá estava o professor Marcelo, na tela de um aparelho eletrônico, mais de 15 anos depois que eu o havia conhecido, transmitindo a velha boa-nova da fenomenologia e a paixão pelo pensamento. Já era o fim do meu doutorado e era bastante curioso ouvir a voz do professor Fabri dentro da minha casa, enquanto eu preparava o chimarrão e a pipoca para ouvir sua aula. Curiosa alteração de nossa condição nestes tempos nos quais os distantes estão literalmente próximos, em um sentido muito especial do termo.
Segundo uma sabedoria meio enlatada que circula por aí, nós somos uma mistura das pessoas com quem mais se convive (a ideia não é má, mas circula de modo meio besta, cravando que somos uma mistura precisamente das cinco pessoas mais próximas de nós). Mutatis mutandis, acho que essa mesma lei opera em nossas identidades intelectuais e nas práticas de nossos ofícios: somos uma mistura dos mestres que tivemos. Nesse sentido, penso que tornar-se quem se é, como nos propôs Nietzsche, passa por uma rememoração: é preciso lembrar de onde se está, lembrar de onde já sempre se está, como mais ou menos diz o poema de Hölderlin. Lembrar que aquilo que se busca na aventura é sempre algo que, no fim, descobrimos que já sempre estávamos carregando conosco. E se em março de 2004 o professor perguntava o que nos havia levado até ali, no fundo, ele já sabia a resposta: “não há motivação mundana que leve alguém a fazer filosofia”, disse o professor em sala de aula em (conforme minha anotação) 7 de abril de 2015.
Pouco vocacionado para a experiência dos mistérios da fé, tenho de admitir que até hoje, já com meus cabelos começando a ficar grisalhos, vez ou outra, sou assaltado pela experiência quase (quase?) sagrada do maravilhamento que, com tanta intensidade e frequência, experimentei lendo o Proptréptico de Aristóteles em Introdução…, com o professor Fabri, no primeiro ano de faculdade. Involuntário como uma memória proustiana, disparada por um perfume que singra espaço e tempo e nos atingindo em uma manhã qualquer, esse maravilhamento, que descobri em suas aulas, se confunde com meu sentimento da própria existência. Não sei se eu teria experimentado isso se me tivesse faltado a preciosa conjunção de acasos que me levou ao curso de filosofia da UFSM, precisamente na época em que lá estava o professor Marcelo. Sei que vou soar meio perverso dizendo isso, mas, sinceramente, sorte foi a minha, o azar é de quem fica, de quem não vai ter a mesma sorte que eu tive. É verdade que é difícil ser genuinamente grato ao domínio impessoal do acaso. Mas é um privilégio poder endereçar gratidão a quem está sempre conosco onde já sempre estamos, onde quer que estejamos. Falando por muitos da minha e de outras gerações daquele curso, registro aqui minha gratidão ao professor.
[1] Aproveito a ocasião para mencionar e agradecer também, quase 20 anos depois, o professor Cristiano Bittencourt, que me emprestou O mundo de Sofia. Generosa também era sua atividade de professor voluntário de teatro em nossa escola.
O artigo é o segundo da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira o primeiro artigo publicado:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/