“Por mais que os artistas expliquem a nossa natureza, a nossa natureza se defende fechando-se no mistério.”
Nélida Piñon
A escritora brasileira Nélida Piñon faleceu, aos 85 anos, no dia 17 de dezembro passado, em Lisboa (foi sepultada no dia 29 de dezembro, no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro), deixando um vazio difícil de ser preenchido na prosa brasileira. Esteticamente, ela era uma ave rara.
Sua literatura plasma um tipo de texto caudaloso e polifônico que procura escrutinar os relevos da alma humana, sempre na dimensão plural. Ela considerava obrigação do escritor abraçar o verbo como quem se serve em mesa farta, porque só assim ele está se alimentando de perspectivas realmente universais e diversas.
Na visão dela, só assim, a cultura cose imaginários plurais. “Quantas mais formas viventes você acumular, representar, mais você será capaz de se aproximar do abismo humano”, disse ela, em entrevista a Claufe Rodrigues, no programa Globo News Literatura, em maio de 2019.
“Somos abissais. Só com esse atrevimento de sermos todos é que podemos, talvez, respirar de uma forma coletiva”, completou a autora.
Para Nélida, a palavra tinha um caráter ígneo. Expressar-se verbalmente era forjar o mundo, e não importava o meio com o qual se expressava. Tinha um prazer imenso em falar, talvez um prazer tão grande quanto em escrever.
Víamos isso nos gestos dela, na entonação da voz, na vibração da fala, no entusiasmo, no vocabulário, na semântica impulsionada pela expressão. “Sou perigosa porque posso ficar falando durante horas.”
Era visível sua alegria com as palavras escolhidas, sempre com o máximo de significado. Cada palavra que emitia chegava girando, polissêmica e envolvente. “O que me levou para a língua foi a imaginação”, dizia. “A língua é o alicerce da imaginação. Ela é uma plataforma que leva você a descobrir os sentimentos.”
Em uma de suas inúmeras entrevistas verificáveis no YouTube, Nélida conta que, quando ainda era adolescente, sua mãe disse, de modo muito fino, muito carinhoso: “Minha filha, você é uma menina tão inteligente, mas você não fala bem.” E Nélida perguntou à mãe o que era falar bem.
“Falar bem”, disse a mãe, “é deixar que se veja o que se está pensando.” E a partir desse toque maternal, Nélida não parou de burilar a linguagem e o próprio pensamento, em busca da perfeição estética e da expressão perfeita. “A frase tem um rosto ideal, e eu vou em busca desse rosto. Vou em busca de alguma coisa que eu não sei, mas sei que está me esperando.”
Tinha alma altiva, replena de eloquência e entusiasmo. Os deuses sorriam dentro dela, e dançavam ao som da música de suas palavras, com as quais, ela, de fato, mantinha um namoro perpétuo.
Sua fala fluía como água de cachoeira, mas numa cadência sem peso, era só leveza e dança. A densidade ficava por conta do significado do tecido proposto pela narrativa de seus romances, de seus contos, e pela conversa envolvente de suas palestras.
Pequena Scherezade
O leitor de Nélida a lê certo de que sua palavra é “uma espécie de casulo”, de onde sairá “um dia, na hora certa, o bicho-da-seda”. A citação é retirada de Vozes do deserto, seu romance de 2008, que recria a trajetória da protagonista do Livro das mil e uma noites, que conta inacabáveis histórias para o rei Sharya, todas as noites, a fim de se livrar da morte.
“Scherezade tem o verbo fácil”, diz a narradora de Vozes do deserto. “As palavras, formando um amálgama inquebrantável, vão servindo como que de escudo para os personagens a desfilarem diante do soberano.”
Ao escrever trechos como este, sobre Scherezade (é assim que o nome está grafado no romance de Nélida), a autora está falando um pouco dela também. Nélida reivindicava para si o epíteto de Pequena Scherezade, e reivindicava para todas as mulheres o senso da invenção narrativa, o caldo criador dos mundos, em verbo, em metáforas, em ritmo, em significados extraordinários.
Em Vozes do deserto, ela desenvolve com maestria seu texto nas entrelinhas do texto árabe, acentuando o desejo onde só era sugerido, mostrando o prazer onde poderia ter sido exposto mais, costurando a tessitura da narrativa nos espaços que vão se abrindo pela nova narradora, num labor de novidade e repetição.
No Livro das mil e uma noites, os personagens em volta de Scherezade, como o vizir, seu pai, a Dinazarda, sua irmã, e o próprio rei Sharya, estão envoltos em névoas e sombras, porque é sempre noite e amanhecer, nunca o dia em plena luz, no momento do ato gerador da narração.
A narrativa de Nélida traz esse sol faltante, capaz de mostrar como esses personagens se movimentam durante o dia, e essa luz posteriormente se derrama sobre os cantos absconsos de suas almas, e assim podemos ver, mais ou menos, suas inclinações.
Vemos, por exemplo, Dinazarda se masturbando enquanto fica num biombo, esperando o rei terminar de fazer sexo com Scherezade. Outro fator interessante é o de Scherezade sentir medo. Isso não é expresso no Livro das mil e uma noites, é apenas timidamente sugerido.
Nélida também faz da experiência de narrar de Scherezade um exercício de metalinguagem, numa relação de olhar que se desdobra sobre si mesma, ou seja, narra a experiência de narrar, enquanto vai tecendo uma poeticidade altamente elaborada, porque a imagem de Scherezade rodopia no interior do texto, a imagem de Scherezade se desdobra em estratégias e volúpias calculadas em cada palavra que fala para o soberano.
Em 1995, ao receber o Prêmio de Literatura Latino-Americana e do Caribe Juan Rulfo (atual Prêmio FIL de Literatura em Línguas Românicas), Nélida demonstrou um pouco de sua força poética no belíssimo discurso intitulado “O presumível coração da América”.
Os devidos direitos
Ela foi a primeira mulher a receber o prêmio, e a primeira entre todos os autores de língua portuguesa a alcançar o feito. Em seu discurso, acolheu o ensejo de lembrar que a memória da mulher está não só na Bíblia, mas em todos os livros que a mulher não escreveu, e não escreveu porque sua memória fora usurpada, porque lhe fora vedado “o registro poético de sua experiência”.
O usurpador desta memória feminina, está claro, somos nós, os homens. “Ao se fazerem eles, porém, dessa memória intérpretes únicos, fatalmente nutriram-se da malha de intrigas, dos diálogos amorosos, das confissões feitas no leito de morte, da preciosa matéria enfim guardada no coração feminino. Em lugar dessa mulher, e unicamente ali, alojaram-se para sempre os espinhos das intermináveis peregrinações humanas sobre a terra, sem os quais nenhuma obra de arte teria sido escrita.”
Na investida contra essa usurpação histórica, Nélida não deixa barato. Reivindica a parte da glória literária que cabe às mulheres, dizendo: “Portanto, a mulher bem pode proclamar, em nome do legado que cedeu à humanidade, ser ela também a outra cara de Homero, de Shakespeare, de Cervantes.”
Em outro texto, feito em homenagem à escritora Rosiska Darcy de Oliveira, sua amiga, intitulado “Mulher da pólis”, Nélida clareia ainda mais sua posição acerca dessa herança, dizendo que “o centro do coração do cotidiano é essencialmente o cotidiano das mulheres, e lá é onde está a história dos homens”.
Em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, em 2014, ela escancara essa ideia, e diz: “Os grandes criadores da literatura não poderiam falar da morte e do amor, se não tivessem conversado com uma mulher, que lhe dissesse ‘olha, homem, o amor é assim, morrer é assim’. Porque a mulher é a grande carpideira, era quem ficava perto do morto, escutava, colhia o último suspiro. Os homens fugiam para a sala. Tinham pavor.”
“Os homens não se permitiam alimentar esse sentimento”, diz Nélida. “A mulher deveria exigir direitos autorais dos grandes autores, porque eles aprenderam o que é o amor, o que é a morte, o que á dor, o que é o filho, o que é perder o filho, o que é trucidar a mulher, pela mulher.”
Nélida escreveu muitos livros e ganhou muitos prêmios. Vozes do deserto, por exemplo, recebeu o Jabuti 2005, nas categorias Romance e Livro do Ano. Nesse mesmo ano, ganhou mais um prêmio internacional, o Princesa das Astúrias, pelo conjunto da obra, concorrendo com autores como Amos Oz, Paul Auster e Philip Roth.
Em 2010, Aprendizes de Homero, livro de ensaios que esmiúça as técnicas da narrativa de ficção, ganhou o Casa de las Américas.
Vida e obra
Assim foi sua vida, exploradora do humano por meio da arte, fazedora de amizades, entre as quais, amizades com gente de direita, como o peruano Mario Vargas Llosa, gente de esquerda, como o mexicano Carlos Fuentes, e gente como Clarice Lispector, que, em 1977, morreu segurando a mão da amiga.
Foi Nélida quem sugeriu a Susan Sontag que lesse Machado de Assis. Entre os escritores e escritoras do Brasil, ela era uma das que mais viajavam o mundo em simpósios internacionais sobre literatura, a convite de instituições estrangeiras. Era amada pelos espanhóis, de modo geral, e pelos galegos, em particular, que a reivindicavam como sua também.
Era neta de galegos. Em outubro de 2015, na Casa de América, em Madri, ela foi recebida pelo presidente da instituição, Santiago Miralles, que na presença do então embaixador brasileiro na Espanha, Antônio Simões, disse que Nélida era a embaixadora do Brasil.
“Está aqui o Embaixador do Brasil, e devo dizer que nós, senhor Embaixador, à sua exceção, naturalmente, consideramos que a embaixadora do Brasil, perpétua, aqui neste país, e nas Ilhas Canárias, é Nélida Piñon. Embaixadora plenipotenciária aqui e ali, nas Ilhas Canárias. Nos ajudou muitíssimo a compreender o Brasil.”
O romance A república dos sonhos (1984), o mais conhecido e mais robusto da autora, narra a saga de uma família de imigrantes vinda da Galícia, região sui generis da Espanha, falante de uma língua muito parecida com o português. Já nos últimos anos, ela publicou outro romance de estatura imensa, Um dia chegarei a Sagres, de 2020, um clássico por vir.
Sobre seu livro de contos A camisa do marido (2014), o argentino Alberto Manguel, outro amigo da escritora, diz que se apenas este se salvasse de uma catástrofe, Nélida estaria muito bem representada entre os clássicos.
Na internet, há vídeos maravilhosos de Nélida pelo mundo: na Argentina, com Alberto Manguel; na Espanha, com Carme Riera; no Brasil, em vários eventos; nos EUA, falando inglês ou dando aula em espanhol na Universidade de Miami.
Dava cursos de literatura, em forma de palestras, na UFRJ, na Universidade de Columbia (Nova York), em Harvard, John Hopkins, Georgetown University. Disputou a cátedra de literatura na Universidade de Miami com 80 candidatos internacionais, para assumir a vaga de Isaac Bashevis Singer, e venceu, dando aula lá entre 1990 e 2003.
Era membro da Academia Brasileira de Letras desde 1990, ocupando a cadeira 30, sucedendo Aurélio Buarque de Hollanda. Foi a primeira mulher eleita presidente da ABL, em 1996. Era membro da Real Academia Espanhola, como acadêmica correspondente estrangeira, eleita em 2016. Tem na Espanha um prêmio de contos que leva seu nome: Prêmio de Relato Breve Nélida Piñon.
Nélida nasceu no Rio de Janeiro, em 3 de maio de 1937. Foi uma mulher muito culta, gostava de balé, ópera, música de câmara, teatro, e amava literatura. Machado de Assis era sua grande paixão. Breta, a neta de Madruga, no romance A república dos sonhos, é um arquétipo machadiano, com sondagem psicológica e comportamento ambíguo, além de ser um alter ego da própria Nélida.
Como Machado de Assis, ela não teve filhos, “não transmitiu”, portanto, “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Mas, em 2016, no programa Sempre um Papo, realizado no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, Nélida disse o seguinte:
“Quando estou escrevendo um livro, fico obcecada, e tenho medo de morrer, porque quero acabar o livro. Por exemplo, A república dos sonhos, que foi muito importante na minha vida, eu escrevia mais ou menos 16, 17 horas por dia, fruto de disciplina ou de paixão, ou de convicção de que eu tinha de acabar, com o medo de deixar meu livro órfão.”
Nélida se foi, inevitavelmente, mas não nos deixou órfãos. Sua obra é capaz de nos alimentar de beleza e de esperança ainda.
Parabéns! Merece palmas este tributo a Nélida Piñon. Li também o livro Vozes do Deserto e me encantei com o ângulo com que a história da Sherezade é apresentado. De fato, a obra de Nélida Piñon é um alimento para todos que a percorrem.