De Olhos Bem Fechados, último filme dirigido por Stanley Kubrick, foi lançado em 1999. Essa película me conduziu de imediato a filmes anteriores e já consagrados do diretor estadunidense, os quais, até então, devo admitir que desconhecia completamente, entre eles os célebres 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980). O derradeiro longa-metragem de Kubrick tem um ar de mistério e é recheado de imagens de sonhos, de fantasias eróticas e de oscilações/confusões entre desejo e realidade.
Ocorre que muitos anos depois de ter visto De Olhos Bem Fechados me sucedeu algo no mínimo inusitado. Mas, antes de narrar o ocorrido, permitam-me a abertura de uma pequena digressão. Entrego-me a ela: cinema e literatura têm uma relação de longa data, mas o fato de essa relação ser longeva não significa exatamente que ela seja sempre plena e bem-sucedida. Quantos romances e contos lemos com entusiasmo e deleite e ao vê-los na tela do cinema nos soam estranhos, incompletos e desleais? Quantos filmes baseados em livros que amamos deixamos de ver quando são transpostos para o cinema apenas para evitarmos uma irremediável frustração? Às vezes, nem mesmo os grandes diretores de cinema ousam estabelecer essa ponte: “trazer uma obra literária para o ambiente cinematográfico”, pois mesmo quando conseguem realizar bons filmes não escapam de críticas virulentas e ocasionalmente injustas. No final das contas, a audácia em estabelecer essa ponte parece se tratar de uma tarefa no mínimo ingrata.
Luchino Visconti (um dos principais realizadores e entusiasta, juntamente com Vittorio De Sica e Roberto Rossellini, do movimento conhecido como neorrealista que revolucionou o cinema italiano do pós-Segunda Guerra), diretor de Rocco e seus Irmãos (1960), um dos meus filmes prediletos, assumiu algumas vezes o desafio de estabelecer “a ponte” entre literatura e cinema. Em uma dessas empreitadas dirigiu o filme O Estrangeiro (1967), adaptação do romance homônimo de Albert Camus, e recebeu diversas críticas negativas, o filme foi rapidamente rotulado como uma obra de pouca importância estética e superficial comparada ao drama existencial e à profundidade presentes no romance de Camus. No entanto, não pretendo aqui discorrer sobre os pormenores dessa aventura fílmica, e tampouco indagar se realmente ela pode ser classificada como uma realização mal-sucedida, ao invés disso, avançarei a minha digressão para uma experiência cinematográfica do mesmo diretor que considero exitosa.
Refiro-me ao filme O Leopardo (1963), baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi Lampedusa. Recorrendo ao romance de Lampedusa, Visconti transporta da literatura para a tela do cinema a história de Dom Fabrizio Salina, interpretado por ninguém menos do que Burt Lancaster (ator norte-americano que protagonizou com a atriz Deborah Kerr uma das mais marcantes e tórridas cenas de beijo da história do cinema em A um Passo da Eternidade). Dom Fabrizio Salina personifica um elegante príncipe da Sicília que testemunha o declínio da nobreza e seus valores morais e políticos e a ascensão da burguesia, ao longo da unificação italiana, em 1860. Embora no filme Visconti altere sutilmente algumas partes do romance de Lampedusa, como optar por apresentar um final para o filme com uma singela mudança contrastada ao romance, essa opção, porém, não chega propriamente a comprometê-lo.
O cineasta italiano consegue realizar um filme excepcional, não somente pela grandiosidade do cenário, mas por captar e transpor para a tela o que considero a “verdade” que o romance busca revelar, isto é, O Leopardo consiste em uma representação da morte, um drama que envolve a transição de um mundo para outro, no qual a existência da personagem central representa um mundo que está evaporando para que outro alvoreça e ocupe o espaço de um mundo decadente. Personifica o infortúnio de nascer em um mundo e viver conforme os seus valores e perspectivas e testemunhar o seu declínio, constatando que a existência desse mundo perdeu completamente o sentido. Com O Leopardo, Luchino Visconti imprime uma marca indelével na história do cinema, que somente artistas geniais conseguem realizar esse tipo de proeza. Em 1971, Visconti assume novamente o risco de levar para o cinema uma obra literária, dessa vez Morte em Veneza, de Thomas Mann. Acredito que nesse longa ele também obtém um resultado plausível. Mas, por agora, basta de Visconti!
Sem me estender mais nessa digressão, recupero De Olhos Bem Fechados, com o intuito de narrar um acontecimento inabitual que me ocorreu – o filme de Kubrick é esteticamente impactante, podendo gerar algum desconforto no espectador e tirá-lo do prumo, da zona de conforto. Não se trata, portanto, de uma experiência fílmica de entretenimento. Ocorre que habitualmente livros podem me guiar a filmes, mas dificilmente o contrário. Todavia, de uma forma inexplicável, recentemente me deparei com um pequeno livro chamado Breve Romance de Sonho (1926), de Arthur Schnitzler, e comecei a lê-lo de forma despretensiosa. Na medida em que ia lendo essa pequena pérola literária, a narrativa estranhamente me chegava como algo bastante familiar. Não no sentido pessoal, mas como um enredo que já fosse do meu conhecimento. Apesar de intrigado com essa familiaridade, e sem a princípio compreender sua origem, decidi por finalizar a leitura antes de buscar elucidar minha cisma. Finalizada a leitura, por meio de uma rápida busca na internet descobri que De Olhos Bem Fechados, filme de despedida de Kubrick, se baseia na obra Breve Romance de Sonho.
Não tenho aqui a intenção de traçar um paralelo entre o filme de Kubrick e o romance de Schnitzler, comparando-os e avaliando suas proximidades e prováveis distanciamentos. Não me atreverei a isso por dois motivos: primeiro, porque não tenho essa competência e, segundo, porque, nesse caso especificamente, tenho um apreço equivalente ao filme e ao romance. Ambiciono tão somente apontar de forma resumida alguns elementos que compõem o enredo do romance.
A história narrada em Breve Romance de Sonho se passa na Viena dos anos 1920 e retrata a vida do jovem casal Fridolin e Albertine. Além de jovens, eles são encantadores, elegantes, abastados e pais de uma filhinha adorável, formando assim “um perfeito modelo de família burguesa”. Tudo parecia ir bem na vida do casal até que, após participarem de um baile de máscaras e embriagarem-se com fartos goles de champanhe, Albertine resolve confessar a Fridolin uma antiga fantasia erótica. Devastado pelo ciúme originado da história secreta da mulher, o marido (médico) sai subitamente no meio da noite para atender a um paciente. Chegando na casa do paciente, atesta que ele está morto, acaba flertando com a filha do falecido e, sem qualquer pretensão aparente, finda a noite em uma orgia de mascarados. Daí por diante, toda aparente solidez ou tudo o que parecia fornecer estrutura à “vida burguesa perfeita do casal” é mergulhado em uma espécie de colapso.
No ambiente da orgia em que Fridolin submerge, o modelo dos bacanais, pautado de sexo e êxtase desmedido, é convertido em melancolia e morte. Nessa insólita aventura sexual, o desejo e o perigo da morte parecem se retroalimentar. A partir disso, o leitor é incitado a mergulhar em uma atmosfera de delírio e terror intrínseco, é tomado por um universo fantástico e oscilante, em que não consegue ter certeza se está lendo o relato de um sonho, sondando um pesadelo, testemunhando um fingimento ou observando uma encenação.
É sabido que o advento da psicanálise repercute diretamente nas diversas expressões artísticas do século XX, também é notória a declaração de Freud de que ele se esquivava da leitura das obras de teatro e dos romances de Arthur Schnitzler – caracterizadas por uma aura de erotismo e melancolia que escandalizaram Viena entre o final do século XIX e início do século XX – por receio de que elas sugestionassem a construção do seu pensamento psicanalítico.
Ainda que exista uma coincidência evidente entre Schnitzler e Freud no que se refere ao interesse de ambos por sexo e morte, avalio que a coincidência se esgota no interesse em si, pois à medida que a psicanálise de Freud parece-me privilegiar as perversões, a literatura de Schnitzler se debruça e investiga o misterioso entrelaçamento que envolve sexo e morte, talvez almejando projetar um farol, ainda que guiado por mãos trêmulas, sobre o vazio e a mediocridade que predominam no modelo de vida matrimonial burguesa e das possíveis causas da infidelidade.
Retomando a Stanley Kubrick, pressuponho que assim como Luchino Visconti obteve êxito na realização das películas, O Leopardo e Morte em Veneza, baseadas respectivamente nos romances homônimos de Giuseppe Tomasi Lampedusa e Thomas Mann, o mesmo ocorreu com o diretor norte-americano em De Olhos Bem Fechados. E penso que um dos méritos de Kubrick em seu derradeiro filme diz respeito justamente à capacidade que o cineasta estadunidense teve em compreender a complexidade das dimensões do sexo e da morte existentes no romance de Schnitzler e transferi-las com propriedade para a tela do cinema. Embora a recepção ao último Kubrick tenha sido apática e ele não a tenha testemunhado, pois morreu um pouco antes do lançamento do filme, De Olhos Bem Fechados se inscreve como um registro primoroso e audaz de um diretor que ao longo de sua carreira não teve medo de transgredir regras e fronteiras artísticas e gravou com maestria sua identidade na história da Sétima Arte.