Se a vida é marcada por incertezas e imprevisibilidades, a evidência de nossa finitude consiste em uma das poucas certezas que temos na vida, senão a única: nascemos e naturalmente começamos a morrer. Nosso nascimento é o início de uma jornada rumo à morte. O ser humano é um ser que tem consciência da finitude da própria vida, e talvez seja justamente essa consciência que lhe cause inquietação. Pois, ao mesmo tempo em que temos a plena consciência de que somos finitos, sofremos com a angústia da incerteza em relação ao que irá nos acontecer depois de nossa morte e como ficarão as pessoas que amamos. Nesse sentido, depositar uma crença na imortalidade parece exprimir uma espécie de negação a respeito do nosso inevitável desaparecimento e, simultaneamente, de expressão de um desejo de eternidade.
Ingmar Bergman, o célebre cineasta sueco, em sua autobiografia Lanterna mágica, narra, entre outros acontecimentos, fatos, memórias afetivas e recordações fílmicas, como a violência física era um “constante argumento” utilizado pelo seu pai na sua educação e na de seus irmãos, e define sua família como rigidamente religiosa, na qual a maior parte da educação tinha como base noções como pecado, castigo, perdão e misericórdia. Bergman descreve que algumas vezes em sua vida se distraiu com o pensamento de cometer suicídio, tendo resumido a vida como uma experiência na qual nascemos sem intenção, em que se vive sem um sentido e que quando morremos simplesmente desmaterializamos, deixamos de existir.
Entre tantos detalhes valiosos que marcam a narrativa autobiográfica de Bergman, uma confissão notável chama atenção: trata-se da admissão do diretor de que sentia um terrível “medo da morte” e esse medo o motivou a realizar uma de suas películas mais conhecidas: O sétimo selo, filme que eternizou a imagem de um cavaleiro medieval perturbado por conflitos existenciais e mergulhado em uma busca espiritual enquanto joga uma partida de xadrez com a morte.
Sobre o tema central do filme, Bergman afirma que o seu medo da morte – um tipo de fixação infantil – era naquele momento algo imenso. Segundo o diretor, ele se sentia frequentemente em contato com a morte; tratava-se de um medo descomunal. Acrescenta, além disso, que, quando terminou de rodar o filme, “o medo da morte havia ido embora”. Bergman salienta, ainda: “tive a sensação de que simplesmente pintei uma tela apressadamente, de forma bastante presunçosa, porém, destituída de arrogância. E, ao terminá-la, disse: aqui está a pintura, levem-na, por favor”.
Assim como Bergman, é notório que outros artistas produziram obras de arte movidos por medos singulares como “o medo da morte”. Mas pretendo me concentrar a partir de agora em uma contribuição apresentada pela filosofia e que acredito que possa nos ajudar a refletir sobre “o medo da morte”. Afasto-me, dessa maneira, da perspectiva artística e conto – daqui por diante – com o suporte da filosofia. Visando perscrutar “o medo da morte” sob um enfoque filosófico, acompanho-me de Epicuro.
Nascido em 341 a. C., na ilha grega de Samos, em 306 a. C., Epicuro fundou uma renomada escola em Atenas que ficou conhecida como “O Jardim de Epicuro”. A Carta a Meneceu ou Carta sobre a felicidade, escrita por ele, pode ser considerada um documento fundamental para acabar com o frequente equívoco difundido por uma interpretação desatenta que tem o hábito de associar à doutrina epicurista (recorrentemente confundida com o gozo desregrado dos prazeres mundanos) a tão somente um hedonismo puro e simples. Na Carta, encontramos trechos que contrariam essa interpretação recorrente, além do mais, também existem registros fidedignos demonstrando que no famoso “Jardim de Epicuro” prevalecia um espírito de comunidade, na qual mestre e discípulos viviam praticamente de maneira ascética, se alimentando basicamente das hortaliças que eles próprios cultivavam, às quais adicionavam somente pão e água, acrescentando queijo em ocasiões excepcionais. Pela análise desses documentos da doutrina epicurista, resumir-se sua doutrina a um hedonismo elementar parece-me errôneo.
A Carta a Meneceu procura versar sobre a conduta humana, almejando atingir a desejada “saúde do espírito”, ou seja, atingir um estado de imperturbabilidade ou tranquilidade. Interessa-me aqui examinar o tema presente na segunda parte da missiva: “o medo da morte”. A morte surge na carta como um dos males mais pavorosos que rodam os seres humanos. Por causar tanto pavor, na percepção de Epicuro, triunfar sobre “o medo da morte” se inscreve como algo extremamente necessário para se alcançar a “saúde do espírito”. Segundo ele, não devemos temer a morte, visto que não há nenhum benefício em viver eternamente. O importante não é a longevidade, mas sim a qualidade de vida. Epicuro defende que a morte não significa nada, uma vez que “todo bem e todo mal residem nas sensações”, e a morte representa fundamentalmente a perda das sensações. A consciência de que a morte não tem nenhum significado nos possibilita desfrutar a efemeridade da vida “sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade”.
Na visão de Epicuro, para quem se encontrar perfeitamente convencido de que “não existe nada de terrível em deixar de viver”, a vida perde o caráter assombroso do “medo da morte”. Trata-se de um tolo aquele que afirma ter “medo da morte”, não em razão de que a chegada dela trará sofrimento, mas devido à agonia que a espera lhe causa. Ora, por que aquilo que não nos aflige no tempo presente deveria nos inquietar quando está sendo esperado? O pensador ressalta que a morte não deve ser vista como uma aflição medonha porque quando estamos vivos a morte não se faz presente, não existe em sua acepção material; em contrapartida, quando a morte se encontra presente, nós não estamos mais presentes. Logo, ela não deveria significar absolutamente nada nem para os vivos e tampouco para os mortos, pois vida e morte ocupam tempos distintos. Todavia, a maior parte das pessoas esquiva-se da morte como se ela fosse realmente o maior dos males humanos ou a deseja como uma forma de interrupção diante dos infortúnios da vida.
Entretanto, o sábio, afirma Epicuro, não expressa um desapreço pela vida, mas também não nutre o temor de deixar de viver. A vida, para o sábio, não consiste em um fardo e deixar de viver não é visto como um mal. Sendo assim, moderadamente, ele escolhe, por exemplo, a comida mais saborosa e não a mais refinada e opulenta, na mesma medida em que “colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve”. Diferentemente do sábio, aquele que recomenda ao jovem “viver bem e ao velho morrer bem” é igualmente um néscio, não apenas por desconsiderar que existem coisas agradáveis e desagradáveis tanto para um quanto para o outro, mas pelo fato de que honestamente a mesma previdência deve ser dedicada a ambos. Não obstante, o pior tolo é aquele que declara: “bom seria não ter nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades”. Se essa declaração é expressada com total certeza, por que ele não dá cabo da própria vida? É livre para tomar essa atitude, se for de fato esse o seu desejo mais íntimo e sincero. Porém, se faz tal declaração por zombaria ou cinismo, está sendo leviano em zombar com algo que não admite esse tipo de zombaria.
Isto posto, cabe agora resgatar brevemente a confissão de Bergman para expor uma concisa ponderação. Para tanto, indago-me: o que podemos extrair da confissão de Bergman a respeito do seu terrível “medo da morte”? Movido por um medo que o assombrava cotidianamente, Bergman produziu um de seus melhores e mais conhecidos filmes. A confissão do diretor sueco exemplifica como um artista é capaz de transformar um medo específico em uma obra de arte. Talvez, mais do que isso, a revelação do cineasta evidencia o poder da arte em oferecer consolos diante de nossos medos e angústias ou propriamente de promover estados de sublimação. Avalio que a confissão de Bergman nos permite fazer esse tipo de conjectura.
Em relação ao pensamento de Epicuro, cabe ainda perguntar: qual a contribuição epicurista para pensarmos a questão do “medo da morte”? Se, por um lado, a perspectiva de Epicuro tem como eixo uma abordagem sensualista, baseada nas sensações, na qual o prazer ocupa um lugar central, correspondendo à satisfação dos nossos desejos e é, especialmente, ausência de dor (convém registrar que Epicuro preconiza a moderação dos desejos, a saber, a extinção de desejos não naturais e desnecessários, como os desejos de riqueza, poder e fama), por outro lado, o pensador assinala que os seres humanos tendem a buscar o prazer e fugir da dor e advoga que busquemos a ataraxia, termo grego que significa um estado de imperturbabilidade do espírito. Acrescenta-se, além do mais, que a perspectiva epicurista preserva a vontade humana e a liberdade individual, abarcando em seu pensamento a sociedade e a consciência moral.
Tendo estruturado seu pensamento dessa maneira, parece coerente o confronto que Epicuro trava com a questão do “medo da morte”, posto que esse medo é fator de angústia e infortúnio, logo, de dor. Ao protagonizar tal confrontação, Epicuro procura retirar do horizonte humano uma dor desnecessária, uma vez que a morte é algo natural. Em vista disso, o sábio, em oposição ao néscio, compreende essa finalidade da natureza e a acolhe, paralelamente; ele é aquele que tem expectativas reduzidas, visto que “o medo da morte” traz em si justamente a angústia da espera de algo que ainda não aconteceu, ou seja, um sofrimento por antecipação. Ademais, diferente do tolo, o sábio não se encanta com a ideia de imortalidade da alma e também não se deixa seduzir pelo desejo de eternidade. E, isso não significa, todavia, como foi visto, um desdém pela vida.
Embora o cristianismo, religião que pautou a educação de Bergman, explane sobre a morte e parece edificar sua concepção de mundo no “medo da morte”, justificando a partir dele sua doutrina, bem como os princípios morais e religiosos que determinam como deve ser a conduta dos cristãos, filosofia e cinema (a arte em geral), via de regra, assumem leituras de mundo que vão na contramão do cristianismo, a saber: se inscrevem como contrapontos às perspectivas do cristianismo na medida em que nos servem de recursos ou expressões (do pensamento e da sensibilidade) de primordial relevância para refletirmos sobre temas tabus como “o medo da morte” de maneiras distintas do cristianismo; a rigor, porque ao invés de se sustentarem em doutrinas fechadas e rígidas, suscitam problematizações, aguçando-nos a sair de um ambiente “seguro” e “confortável” em direção à tomada de consciência, de inúmeros questionamentos e o incentivo do desenvolvimento do senso crítico. Sobretudo, oferece-nos uma diversidade de visões capaz de ampliar nossas possibilidades e entendimentos acerca de temas e questões que fazem parte do rol de preocupações da humanidade.
Referências
BERGMAN, I. Lanterna mágica. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
EPICURO. Carta a Meneceu. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
Vital, parabéns pelo artigo. Lendo-o com interesse, lembrei-me de uma máxima dos epicuristas, em uma das minhas leituras de filosofia, com relação ao tema que vc aborda: “Onde eu estou, a morte não está; onde a morte está, eu não estou”. A leitura do seu texto valeu meu domingo. Um abraço!