[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
Os últimos dias de Paupéria (1982)
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[2]
literato cantabile
agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala.
não é permitido
mudar de ideia.
é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não sabe se nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou
Os últimos dias de Paupéria (1982)
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[3]
era um pacato cidadão de roupa clara
era um pacato cidadão de roupa clara
seu terno, sua gravata lhe caíam bem
seu nome, que eu me lembre, era ezequias
casado, vacinado e sem ninguém.
brasileiro e eleitor, seu ezequias
reservista de terceira e com família
três filhos, prestações e alguns livros
(enciclopédias e biografias).
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
cumpria seus deveres, trabalhava
chegava cedo em casa de madrugava
lutando pelo pão de cada dia.
era um pacato cidadão de roupa clara
e todo dia passava e me dizia
que o mundo estava andando muito mal
eu perguntava por que, eu perguntava
seu ezequias nunca me explicava
apenas repetia
lá dentro do seu puro tropical
este mundo vai seguindo muito mal
este mundo, meu filho, vai seguindo muito mal.
ah, seu ezequias!
que pena, que desastre, que tragédia
que coisa aconteceu naquele dia
seu ezequias, ah, seu ezequias
saiu do emprego e foi tomar cachaça
e apenas de manhã voltou pra casa
batendo na mulher, xingando os filhos
seu ezequias, ah seu ezequias
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
e agora é a vergonha da família.
Os últimos dias de Paupéria (1982)
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[4]
do lado de dentro
um dois três quatro
o maior barato
é sair na rua olhando a cara das pessoas
um dois feijão com arroz
a maior barata desfilando na cozinha
mais uma troupe inteira
pastorinhas
três quatro feijão no prato
barato é
era o maior barato
olhar as caras da pessoa
que eu amava loucamente
absolutamente
refletidas no meu trapo
cinco seis falar inglês
francês alemão chinês
vocês se lembram do que nunca aconteceu
e era uma vez
um sete e um oito
comer biscoitocoitobiscoito
e depois sair por aí
feito uma boneca vagabunda
nove dez
comer pastéis comer pastéis!
Os últimos dias de Paupéria (1982)
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[5]
andarandei
não é o meu país
é uma sombra que pende
concreta
do meu nariz
em linha reta
não é minha cidade
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
nem é o nosso amor
é a memória que suja
a história
que enferruja
o que passou
não é você
nem sou mais eu
adeus meu bem
(adeus adeus)
você mudou
mudei também
adeus amor
adeus e vem
Os últimos dias de Paupéria (1982)
Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina (PI) no dia 9 de novembro de 1944 e suicidou-se no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1972. Aos 16 anos, muda-se para Salvador com o objetivo de prosseguir os seus estudos secundários. Nessa cidade, conhece Gilberto Gil e Glauber Rocha, de quem foi assistente em Barravento (1962). Em seguida, vai para o Rio de Janeiro estudar jornalismo, mas não chega a concluir o curso. Foi jornalista, poeta, letrista, ator e agitador cultural vinculado à Tropicália, ao cinema marginal e à poesia concreta. Nesse meio cultural, convive com Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil, Gal Costa, Waly Salomão, Augusto e Haroldo de Campos, Ivan Cardoso e Helio Oiticica. No Jornal dos Sports, Correio da Manhã e Última Hora, escreveu textos sobre cultura. No último, criou a prestigiada coluna “Geleia Geral”, na qual costumava polemizar sobre poesia, cinema e música. Ana Maria S. de Araújo Duarte, com quem foi casado e teve um filho, e Waly Salomão organizaram o livro Os últimos dias de Paupéria (Do lado de dentro) – Torquato Neto que foi publicado pela editora Max Limonad (São Paulo, 2. ed., 1982), no qual copilam os seus poemas, suas letras e seus textos jornalísticos. Sobre o autor, podem ser ainda conferidos o documentário Todas as horas do fim, de 2017, realizado por Eduardo Alves e Marcus Fernando, e as seguintes biografias, abrangendo obra e vida: Pra mim chega – A biografia de Torquato Neto, de Toninho Vaz (Casa Amarela, 2003), e Torquato Neto ou a carne seca é servida, de Kernard Kruel (Zodíaco, 2008). Paulo Roberto Pires organizou em dois volumes, em 2005, pela Rocco, sua obra completa. Em homenagem à memória do poeta, Caetano Veloso compôs a canção Cajuína (1979), do álbum Cinema transcendental.