Naquela tarde, o engraxate Salu teve alguns aborrecimentos. Há um tempão, estava no distrito – a contragosto e com vontade de mijar – sob o bombardeio de um interrogatório que era conduzido de forma burocrática, sem pressão mas incisivo, às vezes óbvio.
Uma pergunta – uma resposta.
Ele só estava ali porque, sem querer, tinha sido testemunha ocular de um assalto que acontecera do outro lado da calçada. Foi assim, meio enfarado, que respondeu a outra curiosidade policial, ao mesmo tempo em que encarava através de suas lentes de fundo de garrafa o corpanzil do inquiridor, que soprava sem remorso um charuto fedorento:
“Até eles pararem o carro na porta do banco, eram três homens mascarados, sem contar o que ficou na direção. Depois, não vi mais nada. Houve o tiroteio, uma coisa medonha, que enfumaçou tudo. Não por causa dos tiros, é claro, mas porque os bandidos lançaram bombas de fumaça. Não tenho certeza, mas acho que o segurança do banco atirou também.”
Foi aí, nesse trecho do depoimento, que o delegado quis estabelecer um ponto coerente:
“Então eles eram quatro.”
O engraxate assentiu e continuou o seu relato:
“Podia até ser mais, se tivesse outro homem escondido no porta-malas ou se tivesse outro carro mais atrás dando cobertura ou se tivesse ainda alguém disfarçado protegendo a ação. Tudo isso, porém, é mera conjectura.”
Enquanto o escrivão terminava o registro da testemunha, o delegado fez outra interrogação olhando meio distraído as suas anotações.
“Você então não viu mais nada, além do que já disse?”
Como estava de bom humor naquela tarde, respondeu:
“Eu acho que até vi muito, considerando que normalmente, por causa das vistas ruins, enxergo pouco as belezas da vida.”
Depois que o engraxate foi dispensado, o chefe disse pro escrivão:
“Reúna mais agentes além da equipe, inclusive o pessoal que tá coçando!”
O engraxate voltou para a sua banca, que ficava em frente à agência assaltada.
Daí em diante até o início da noite, a cidade ouviu sirenes uivando em vários pontos.
Ao longo de sua investigação, o delegado perguntava-se por que o engraxate sabia falar tão bem e por que, apesar de simples, tinha uma dignidade incontestável. E arrematou, pensando com o seu charuto:
“Foi só por isso que não levou uns tabefes.”
Antes que a noite cobrisse o mundo, o engraxate recolheu o seu material – e foi embora. Andava como um operário que voltava pra casa. Não muito longe de onde estava, dobrou uma rua e em seguida entrou num sobrado. Quando abriu a porta, os bandidos cantaram a uma só voz, bem afinadinhos:
“Com quem será,/ com quem será,/ que o mestre Salu vai casar?”
De olho no relógio, avisou, fazendo um gesto e encerrando a festa:
“Cada um sabe o seu rumo.”
No ápice de seus 60 anos, depois de muito sofrimento, paciência e sabedoria, era o quinto bandido – o que tinha planejado o assalto. Quem é do ramo não tropeça no métier.
Antes de desaparecer sem deixar vestígios, pegou a sua bolada e foi curtir a vida em algum lugar do Caribe.
Na sua penúria especulativa, o delegado Xavier ficou durante toda a sua vida ativa ruminando o fato de um engraxate saber falar a expressão “mera conjectura” – e ele não conseguir encerrar o inquérito.