Vem se tornando cada vez mais comum nos depararmos com livros sobre o estoicismo ou o “modo de vida estoico”. Nas entradas das livrarias de shoppings, aeroportos e rodoviárias, assim como em bancas de jornal, os livros sobre o estoicismo dividem espaços com exemplares de autoajuda, best-sellers, religiosos, esotéricos e espirituais. Os títulos das “obras” acerca do possível “modo de vida estoico” são um tanto curiosos, para citar alguns: Lições de estoicismo, O pequeno manual estoico, O estoicismo hoje e Diário de um estoico. A popularidade dos estoicos, porém, não se restringe a esses ambientes físicos, muito pelo contrário, pois também ocupam várias páginas na web. No YouTube, por exemplo, existem diversos vídeos a respeito da filosofia estoica, desde aqueles nos quais especialistas oferecem com precisão uma síntese do pensamento estoico, passando por vídeos carregados de certos psicologismos na pior acepção do termo, chegando até a animações coloridas baseadas na filosofia estoica.
A essa popularidade, e a toda uma jogada publicitária que parece haver ao redor do estoicismo, soma-se uma imagem superficial acerca do que poderia ser um “estoico”. Reiteradamente encontramos em livros como os citados acima, e na internet de maneira geral, que “um estoico seria uma pessoa indiferente aos sofrimentos e capaz de expressar apatia diante de acontecimentos terríveis”. Essa é a imagem difundida recorrentemente, uma imagem que expressa um significado trivial do que consiste ser um “estoico”, e observada em frases como: “sua frieza e tranquilidade são dignas de um estoico”. Diante de tal imagem, em outros termos, Maurício Marsola ressalta que duas perguntas se fazem necessárias: será que isso realmente é o estoicismo? O que os filósofos estoicos afirmam em seus textos pode, de fato, ser compreendido simplesmente dessa forma? Se nos debruçarmos sobre os escritos produzidos por pensadores filiados ao estoicismo, constataremos inicialmente que, conforme Marsola, “o estoicismo refere-se a uma doutrina muito mais abrangente do que tal imagem. Doutrina que envolve, além de aspectos filosóficos, aspectos antropológicos e cosmológicos que se encontram incorporados às meditações apresentadas pelos filósofos estoicos” .
Sendo assim, cabe também indagar: afinal, o que é o estoicismo? Como o estoicismo se define? Penso que um exame de questões como essas pressupõe, antes de mais nada, uma apresentação – ainda que de maneira resumida – sobre o ambiente que contribui para o alvorecer do estoicismo. Compreender o ambiente no qual se originou o estoicismo talvez nos disponibilize de recursos teóricos para adiante refletirmos sobre alguns pormenores dessa doutrina.
O surgimento do estoicismo encontra-se relacionado à perda da liberdade política na Grécia antiga. Liberdade que caracterizou o período clássico (séculos V e IV a.C.), o esplendor da civilização grega; no âmbito da política, a democracia ateniense pode ser considerada a expressão mais representativa desse período, que foi, ao mesmo tempo, testemunha do advento de diversas manifestações nas artes e na filosofia – trata-se do momento no qual viveram Sócrates, Platão e Aristóteles. A perda da liberdade política modificou sobremaneira a imagem na qual a Grécia vinha aprimorando sua experiência intelectual e cultural, especialmente sua invenção mais audaciosa: a filosofia. O declínio político grego, mediante o domínio macedônio e a conquista romana, resultou na anexação da Grécia a uma ampla ordenação política, na qual prevalecia uma espécie de mosaico de povos e culturas. Com efeito, as distinções entre gregos e orientais, da qual outrora os gregos se vangloriavam e buscavam conservar, se desmancharam como nuvens no céu.
Assim emerge o período denominado de “helenístico” (séculos III e II a.C.), no qual o conhecimento deixa de ser um instrumento de feitura para a ação política, passando a concentrar seu olhar no desenvolvimento “interior do ser humano”. Afastada das inquietações e dos problemas em torno da política, a filosofia helenística ambiciona firmar regras universais para orientar a conduta humana. Desvinculada da política, a ética passa a ocupar o coração das elucubrações das diversas tendências e vertentes da filosofia, se preocupando em buscar um tipo de sabedoria capaz de promover o bem individual e a “imperturbabilidade da alma”.
Entendida a conjuntura que possibilitou o surgimento do estoicismo e a presença de uma ênfase no bem individual nessa filosofia, convém, em linhas gerais, assinalar outras particularidades dessa doutrina filosófica. Segundo Marsola, o estoicismo sustenta o pressuposto de que devemos “viver de acordo com a natureza”. Tal premissa significa que, na perspectiva estoica, o universo se configura em um amplo sistema, caracterizado por relações causais necessárias. Trata-se de uma ordem necessária, marcada por uma racionalidade ampla em que todas as coisas confluem rumo a uma harmonia plena, que os estoicos denominam de logos, isto é, o mundo consiste em um grande logos, com frequência intitulado igualmente de physis (natureza) ou mesmo Deus. Na visão dos estoicos, Deus é essa própria natureza que é governada pelas relações necessárias. Por esse ângulo, caberia ao filósofo ou sábio conquistar uma apreensão a respeito disso e buscar uma harmonia interior para entrar em conformidade com a harmonia universal. Em poucas palavras, para os estoicos, o mundo se caracteriza por uma harmonia.
Marsola acrescenta que, ainda que exista harmonia no mundo, eles não deixam de se indagar sobre os males que nos atormentam e sobre a possibilidade de sermos felizes. Mas é possível sermos felizes diante de tantos males que nos atormentam? Eis uma pergunta importante para o estoicismo. A resposta dada pelos estoicos a essa pergunta será positiva. Todavia, somente para o filósofo ou sábio; e mesmo para ele será necessário a capacidade de “viver de acordo com a natureza” – e para conduzir a sua vida dessa forma, será preciso, segundo os estoicos, acomodá-la à “providência”. É interessante salientar que, no estoicismo, não se trata de uma providência pessoal (tal qual vemos no cristianismo em que existe uma providência que zela compassivamente pelas pessoas de maneira individual). Na perspectiva estoica, a “providência” refere-se à própria “ordem, necessária, objetiva da natureza e não há nada que possamos fazer para modificá-la”, sendo assim, cabe-nos empreender um esforço para produzir uma harmonia em nós mesmos, ou seja, fazer com que a nossa alma evidencie a mesma harmonia existente no mundo.
Outro aspecto de suma importância para o estoicismo, sublinha Marsola, diz respeito “à capacidade que nós temos de distinguir entre aquilo que está em nosso poder e o que não está em nosso poder”. Aquilo que não está em nosso poder, a saber, os males que nos atingem habitualmente, é externo a nós, por isso, nós não temos a capacidade de modificá-lo. Porém, temos a tendência de nos incomodarmos e constantemente querer mudar as coisas que não estão ao nosso alcance, isto é, costumamos perder tempo com aquilo que não está no nosso poder alterar e esquecemos daquilo que temos poder de modificar. Se não somos capazes de modificar aquilo que é externo a nós, o que estaria em nosso poder mudar? A resposta do estoicismo: a nossa interioridade. A título de ilustração, de onde se emanam os males que costumam nos afligir? Emanam da natureza, dos acontecimentos e circunstâncias que podem ocorrer, seja no mundo de um indivíduo especificamente, seja fora do mundo dele, na própria natureza, e isso nós não temos a capacidade de alterar.
Ainda, para Marsola, desse modo, não está ao nosso alcance (ainda como forma de ilustração) controlar o outro, ou seja, conter o amor, a amizade ou a raiva do outro sobre nós. Tampouco impedir que o outro nos traia, nos abandone ou que percamos a confiança em alguém que nos cause algum dano irreparável. Nesse sentido, a questão que se apresenta parece ser: se não podemos controlar o que emana do outro, temos capacidade de nos defender disso de alguma maneira? Para o estoicismo, sim, e, no âmbito da interioridade, que é a nossa razão. A saída apontada pelo estoicismo é o cuidado com o nosso “jardim interior”. Nós podemos cuidar de nossa razão e das nossas paixões. Daí a necessidade de um processo terapêutico direcionado para educarmos as nossas paixões e a nossa razão no exercício da prudência. Para os estoicos, é nisso que consiste a sabedoria. Trata-se, portanto, de uma atividade interior que podemos fazer em relação àquilo que nós podemos modificar.
Essa atividade demanda a constante realização de algumas virtudes. As virtudes cardeais que Platão e Aristóteles já haviam definido, a saber: “a sabedoria, a justiça, a temperança e a coragem”. Sob o enfoque do estoicismo, para Marsola, podem, resumidamente, assim serem conceituadas: sabedoria, virtude que exige uma dedicação regular, envolve o estudo e as nossas vivências, podendo ser adquirida por meio da reflexão sobre os textos filosóficos dos estoicos, pela prática do ensino e aprendizado e mediante nossas experiências de vida. Justiça, que se refere à prática de uma vida equilibrada e justa na relação que temos com nós mesmos e com os outros. Temperança, situada no campo da moderação concernente às nossas paixões; uma vez que não temos domínio ao sentirmos paixões, teremos paixões, e elas também nos constituem – nós sentiremos ódio, inveja e ciúmes, e não poderemos impedir que sejamos ultrajados por essas paixões, mas teremos a capacidade de moderá-las. Coragem, virtude que consiste na fortaleza que podemos construir ao longo de nossas vidas. A respeito dela, afirma Sêneca em seu tratado Da tranquilidade da alma: “é necessário ter coragem para viver, o ato de levantarmos da cama e irmos trabalhar muitas vezes exige uma enorme fortaleza. Estudar, trabalhar, cumprir nossas obrigações, para tudo isso, precisa-se de coragem e de fortaleza porque isso demanda constância e determinação do nosso caráter. Sem coragem nós não fazemos nada. Então, é preciso saber que é necessário ter coragem de viver”.
Está claro, sob a perspectiva do estoicismo, que as oscilações das paixões nos afetam e não temos o controle sobre isso, mas podemos nos empenhar para reagirmos de forma saudável às afetações causadas pelas paixões, afirma, em outras palavras, Marsola. Não tenho poder sobre os episódios que me sucedem e tampouco sobre as paixões que me atingem, porém, tenho a capacidade de refletir sobre as paixões e de agir perante elas. Recorrendo a Sêneca novamente, mas agora ao seu tratado Sobre a ira, observamos que não está em meu poder sentir ira, mas tenho o poder de reagir sobre essa paixão. Isso significa que podemos cuidar de nossa ira, submetendo-a a uma terapia para que ela não se apodere de mim a ponto de me conduzir a agredir alguém. Sêneca nos ensina que uma coisa é termos vontade de agredir uma pessoa em nome da ira que nos consome, enquanto outra coisa é chegarmos às vias de fato. Desse modo, cuidando das paixões, vamos mitigando o poder que ela tem sobre nós, e elas vão sendo substituídas por outro tipo de sentimento, por exemplo, o de adotarmos outra espécie de disposição em relação aos outros.
As virtudes elencadas pelo estoicismo implicam um trabalho habitual. Não se referem a algo que se conquista de um dia para o outro. Mas são o corolário de uma atividade laboriosa e recorrente, possivelmente uma atividade a ser exercida ao longo da jornada de uma vida inteira, destaca Marsola. É por meio da terapia interior – permitam-me chamá-la de “terapia filosófica” – que podemos agir em face das paixões e alcançar a “sabedoria de vida”. Assim, alcançaremos o que os estoicos denominam de ataraxia (um estado de plena tranquilidade da alma). Para tanto, o primeiro passo para atingirmos esse estado consiste em reconhecermos amiúde a distinção entre aquilo que está em meu poder daquilo que não está. A partir daí, ao invés de sermos tomados pelas paixões ou por aquilo que nos acontece, poderemos começar a agir com tranquilidade e exercer a sabedoria.
Frequentemente, os títulos sobre o estoicismo vistos nas prateleiras de livrarias, bancas de jornal e na Internet parecem utilizar a filosofia estoica como um manual prático de viver com sabedoria e acentuam algo que parece existir no cerne do estoicismo e que me soa como aquilo que Balzac chamava de “suicídio cotidiano”, isto é, a “resignação”. Seria isso que haveria por trás do segredo do sucesso de popularidade dos estoicos na contemporaneidade? Talvez. Na realidade, a popularidade dos exemplares referentes ao estoicismo na contemporaneidade suscita mais de uma leitura possível. Pois, se, por um lado, pensarmos que o cuidado defendido pelo estoicismo se limita meramente ao cuidado interior e individual e não aguça a nossa indignação em relação à injustiça, à desigualdade, à hipocrisia e à fome, os “manuais estoicos” encontram-se perfeitamente alinhados à concepção de individualismo contemporâneo que preconiza a resignação diante de um mundo injusto e oferece saídas que se dariam apenas pela via individual. Embora, por outro lado, o estoicismo também nos permita a interpretação de que, quando cuidamos de nós mesmos, o resultado desse cuidado também pode refletir na vida de outras pessoas e na da sociedade ao nosso redor. Essa leitura, provavelmente mais ampla, entretanto, parece ser deixada de lado pelos manuais contemporâneos inspirados no estoicismo que, na maioria das vezes, se concentram tão somente em oferecer um produto facilmente vendável.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
AURÉLIO, Marco. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).
BALZAC, Honoré de. As ilusões perdidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
MARSOLA, Maurício. Felicidade. São Paulo: VMF Martins Fontes, 2015.
MARSOLA, Maurício. Como dirigir sua vida de acordo com a natureza. Casa do Saber, 2020. Disponível em: www.youtube.com.
PLATÃO, A república. São Paulo: Abril Cultural, 1997. (Os Pensadores).
SÊNECA, Lúcio. Da tranquilidade da alma. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).
SÊNECA, Lúcio. Sobre a ira. São Paulo: Penguin-Companhia, 2014.
Touché, mon cher.