[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
Explicar o que é a psicanálise é uma tarefa difícil e complexa, talvez inesgotável. Logo, optamos por iniciar este ensaio esclarecendo a sua etimologia. Psicanálise foi um termo originalmente cunhado em francês (psychanalyse), por Sigmund Freud (1856-1939), em 1896, no ensaio L’hérédité et l’étiologie des nevroses (ROUDINESCO, 1998), termo oriundo da junção das palavras gregas antigas ψῡχᾱ́, transliterada para o latim como psychḗ, e da palavra ἀνάλυσις, transliterada para o latim como analysis (MICHAELIS, 2023).
Pensando em uma tradução aproximada do latim para o português, chegaríamos aos termos “alma” + “análise” (psychḗ-analysis), ou ainda, “análise da alma”. Apontamos ainda que “alma”, numa visão contemporânea da psicologia, conota os elementos que constituem o “psíquico” do ser humano, como os comportamentos, pensamentos e sentimentos.
Posteriormente, em 1923, no seu texto “Psicanálise” e “Teoria da Libido”, Freud daria uma definição do que é a psicanálise, que viria a calhar bem com a tradução “análise da alma”. Nas palavras de Freud (1923/2011, p. 245):
PSICANÁLISE é o nome: de 1) um procedimento para investigação de processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis; 2) um método de tratamento de distúrbios neuróticos, baseados nessa investigação; 3) de uma série de conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma, que gradualmente passam a constituir uma nova disciplina científica.
Considerando a maneira tal como Freud definiu a psicanálise, podemos elaborar algumas considerações. Freud teorizou que nossas experiências e memórias não se esvaem com o passar do tempo, mas ficam contidas em uma instância psíquica, a qual denominou de inconsciente. Pensando nisso, a teoria psicanalítica desenvolveu técnicas com o objetivo de ter acesso a esse inconsciente, detentor de tais experiências e memórias.
Dentre as técnicas desenvolvidas, daremos ênfase à associação livre. Essa técnica consiste em orientar aqueles que procuram um atendimento psicanalítico a falarem livremente sobre o que lhes vem à cabeça. Freud descobriu que, utilizando essa técnica, as memórias e experiências, de alguma forma armazenadas no inconsciente, viriam à tona em algum momento através de associações no discurso.
Tal foi a importância dessa técnica que Freud observou ao longo do tempo que associações livres, em conjunto às interpretações por parte dos analistas, traziam alívio aos sintomas daqueles que procuravam atendimento psicanalítico. À época, a nosologia (ciência que estuda e classifica as doenças) não era uma disciplina tão avançada como hoje, e muitos transtornos mentais não tinham nomenclaturas próprias e critérios diagnósticos bem definidos, de forma que a psicanálise classificaria (e ainda classifica) os transtornos mentais como pertencentes a três categorias de estrutura da personalidade (neurótica, perversa e psicótica), isto é, os sujeitos seriam diagnosticados como possuidores de diferentes estruturas de personalidade a partir da análise de elementos da sua dinâmica psicológica. Como exemplo, podemos apontar que ainda hoje transtornos classificados como obsessivos compulsivos (a depender do conteúdo da obsessão), ou alguns transtornos de sintomas neurológicos (paralisias e perdas de sentidos sem a presença de doenças físicas), entre outros, são classificados em uma leitura psicanalítica como “transtornos neuróticos”.
Embarcar na associação livre e no processo terapêutico psicanalítico exige daqueles que o procuram serem pacientes (no sentido literal do termo). O compromisso da psicanálise não é o de instruir aqueles que a procuram, mas trazer à tona, através da própria associação livre do paciente, aspectos sobre si há muito tempo esquecidos, ou questionamentos que outrora nunca puderam ser levantados em outra circunstância a não ser pelo contato com si mesmo, provocando dessa forma um alívio dos sintomas ou sofrimentos dos sujeitos. Obviamente, esse não é um processo isento de barreiras, nomeadas de resistências, às quais em última instância podem ser compreendidas e superadas.
A psicanálise foi amplamente difundida como um terapia que “cura pela fala”, sendo a progenitora de muitos dos processos terapêuticos modernos. Freud, com seu método, foi o precursor no tratamento de doenças mentais ditas como graves e até mesmo incuráveis na época. Demonstrou, ao contrário do que se pensava, que a histeria não era uma doença que acometia exclusivamente a população feminina ou que se originava no útero. Expôs que a sexualidade atravessa a constituição e marca aspectos psicológicos de todas as pessoas, principalmente na infância, sofrendo fortes críticas e resistência por parte de conservadores de sua época. Em outro momento, Freud ainda teorizou sobre aspectos da cultura e da sociedade humana, passando por assuntos como a própria constituição da sociedade, a função da religião e sobre os conflitos humanos, como a guerra.
Antes de Freud e a psicanálise, a busca por tratamentos psicológicos não era considerada comum. Suas inovações levaram ao entendimento de que as psicopatologias não se constituíam apenas de forma orgânica, como os médicos pensavam à época, mas que poderiam ser examinadas e curadas através da escuta do doente, uma forma de tratamento considerada “mística”. Com Freud, o interesse passa a ser o sujeito e sua história e não necessariamente a doença e seus sintomas (MOREIRA; ROMAGNOLI; NEVES, 2007).
Com o passar dos anos, as ideias de Freud foram ampliadas por outros autores, que concordaram, discordaram, expandiram seus fundamentos, ou buscaram a partir deles suas próprias perspectivas. Daí surge o que nomeamos de “escolas psicanalíticas”, que se fundamentam em diferentes perspectivas. Entre elas podemos citar a Psicologia (Psicanalítica) do Ego, a Teoria do Apego, a Psicologia Analítica de Jung, a Psicanálise Lacaniana, Winnicottiana etc., cada uma delas, a seu modo, se aproxima ou se distancia da Psicanálise Freudiana, de alguma forma continuando-a.
Aos críticos da psicanálise ainda muito presentes e preocupados com o seu método e trabalho, replicamos as palavras uma vez escritas por Freud sofre a sua função, ainda nos primórdios de sua criação:
Uma psicanálise não é uma investigação imparcial, científica, mas uma intervenção terapêutica; em si ela nada quer provar, quer apenas mudar algo. Na análise o médico sempre dá ao paciente – às vezes em maior, às vezes em menor medida – as ideias antecipatórias conscientes com cujo auxílio ele deve ser capaz de perceber e apreender o inconsciente. Pois há casos que requerem ajuda mais ampla, e outros, mais modesta. Sem tal ajuda ninguém sai do lugar. (FREUD, 1909/2015, p. 237).
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
FREUD, S. “Psicanálise” e “Teoria da Libido” (1923). In: __________. Obras completas, volume 15: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução: P. C. de SOUZA. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. v. 15, p. 273-308.
FREUD, S. Análise da fobia de um garoto de cinco anos (“O pequeno Hans”, 1909). In: __________. Obras completas, volume 8: O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906‑1909). Tradução: P. C. de SOUZA. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 8, p. 123-284.
MOREIRA, J. de O.; ROMAGNOLI, R. C.; NEVES, E. de O. O surgimento da clínica psicológica: da prática curativa aos dispositivos de promoção da saúde. Psicologia: Ciência e Profissão, [online], v. 27, n. 4, pp. 608-621, 2007. DOI <https://doi.org/10.1590/S1414-98932007000400004>. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1414-98932007000400004>. Acesso em: 31 jul. 2023.
PSICANÁLISE. In: MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2023. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/psican%C3%A1lise>. Acesso em: 31 jul. 2023.
ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Mestrado em Psicologia da UFMS. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o décimo texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.