[Coautor: Alberto Mesaque Martins[1]]
Em 2023, a cultura hip-hop completa 50 anos, atingindo patamares inimagináveis em relação àquela block party promovida por Cindy Campbel e pelo DJ Kool Herc, em 11 de agosto de 1973. O breaking, que já foi proibido em alguns lugares, hoje é praticado na maioria dos países do mundo, o que possibilitou sua entrada nos jogos olímpicos de Paris em 2024. Porém, seu desenvolvimento não se limitou ao âmbito demográfico e técnico, já que, conceitualmente, também houve um refinamento considerável.
Os quatro elementos da cultura hip-hop são o breaking, o deejaying, o emceeing/rapping e o graffiti, sendo todos eles sustentados por meio do quinto elemento: o conhecimento. O breaking, nosso principal foco, é expresso através da linguagem da dança. Este ensaio, portanto, objetiva fazer uma leitura da Restrição de Generalidade do filósofo anti-intelectualista não conceitualista Gareth Evans e a riqueza de detalhes decorrente dela, direcionada à dinâmica do processo criativo do breaking. A ideia é apresentar um exemplo específico para o que Evans pensou ocorrer com pensamentos em geral, bem como introduzir alguns conceitos básicos da filosofia ao público do hip-hop, oferecendo uma pequena contribuição a essa cultura.
Primeiro, algumas informações sobre o breaking são pertinentes. Para nossos propósitos, B. Girl e B. Boy são os nomes dados a especialistas no breaking que têm conhecimento prático, incluindo um extenso vocabulário de passos que conseguem executar, além de contarem com um amplo e apurado repertório conceitual. Faz parte desse repertório conceitual os passos de breaking tomados como objetos com propriedades. Neste repertório podem ser incluídos, por exemplo, os passos “chair freeze”, “windmill” e “six-step”, que são alguns dos objetos fundamentais, considerados como alicerce da cultura hip-hop. Isto é um ponto importante, visto que os passos fundamentais são usados como ponto de partida do processo criativo, somados aos demais conhecimentos que fazem parte da foundation[2], funcionando como condições de possibilidade da criação de passos de assinatura (passos autorais) que não perdem a estética característica do breaking. Por isso, uma orientação comum para quem está iniciando é aprender os passos fundamentais e depois alterá-los para criar as próprias assinaturas. Logo, reconhecer, pensar e executar um passo fundamental é crucial no breaking.
Nesse contexto, podemos pensar a Restrição de Generalidade proposta por Evans. Trata-se de um parâmetro para distinguir o que é conceitual do que é não conceitual, mostrando como essa distinção se dá. A ideia central é defender que estados perceptivos não são estruturados por conceitos por ocorrerem antes do julgamento, logo são não conceituais. Já estados cognitivos, como crenças e desejos, envolvem, necessariamente, pensamentos estruturados por conceitos de objetos e de propriedades, portanto são conceituais. Assim, a Restrição de Generalidade é um critério utilizado para definir quando alguém tem a posse de algum conceito, sendo capaz de pensar um objeto em particular. Evans diz que “se a um sujeito pode ser atribuído o pensamento que a é F, então ele deve possuir os recursos conceituais necessários para alimentar o pensamento que a é G para cada propriedade ser G sobre a qual ele possua um conceito” (EVANS, 1982, p. 104).
Nessa descrição, conceitos são representações de objetos (em letras minúsculas) e de propriedades (em letras maiúsculas), que devem poder ser recombinados por quem está em posse de tais conceitos. Logo, esse critério envolve a habilidade de: (i) recombinar um conceito individual de um objeto com outros conceitos gerais de propriedades, ou (ii) recombinar um conceito geral de propriedade com outros conceitos individuais de objetos. Uma das consequências dessa distinção é a riqueza de detalhes que é maior entre o que é percebido não conceitualmente e o repertório conceitual de quem julga o que percebe.
A posse do conceito depende não apenas da habilidade de aplicar o mesmo conceito mais de uma vez, como também da habilidade de adicionar ou retirar em pensamento alguma propriedade do objeto ou algum objeto da propriedade. Habilidade que podemos observar na maneira que os pensamentos são formulados durante o processo criativo do breaking. Usando os conceitos dos passos de breaking como exemplo de objetos com propriedades submetidos à Restrição de Generalidade, podemos ter as seguintes situações: (i) alguém apossa-se do conceito individual do objeto six-step somente quando é capaz de recombiná-lo com outros conceitos gerais de propriedade que detém – por exemplo, “six-step é rápido”, “six-step é circular” e “six-step tem hook” – , preservando o conceito já possuído do objeto; (ii) alguém detém os conceitos gerais “rápido” e “hook” (uma perna dobrada em forma de gancho que se tornou uma propriedade no breaking) somente quando é capaz de recombiná-los com outros conceitos individuais de objetos que já possui – por exemplo, “six-step é rápido”, “windmill é rápido”, “flare é rápido” ou “six-step tem hook”, “peter pan tem hook”, “chair freeze tem hook” –, preservando o conceito já possuído da propriedade, seja ele específico do breaking como “hook”, “threads”, “pretzel”, “sweeps” ou “spider”, seja ele de qualquer tipo como “rápido”, “circular”, “pesado” ou “imóvel”.
Como consequência, o alcance combinatório do pensamento é determinado pelo repertório conceitual, isto é, a quantidade de pensamentos possíveis é proporcional à quantidade de conceitos que alguém já é detentor. Ademais, o alcance do reconhecimento de objetos e propriedades presentes na percepção também é proporcional a esse repertório conceitual, tendo uma riqueza de detalhes muito menor em relação ao que é dado na percepção.
Logo, não é necessário dispor de conceitos para perceber não conceitualmente esses objetos e propriedades. Especialistas como B. Girls e B. Boys não percebem mais coisas em relação a quem não é especialista. Porém, contam com um repertório conceitual mais amplo, reconhecendo mais objetos e propriedades de sua área de especialização e estruturando uma quantidade maior de pensamentos sobre o assunto. Quem não é especialista não é capaz de reconhecer e pensar que o “chair freeze tem hook”. Já B.Girl e B.Boy podem pensar que o “chair freeze tem hook”, além de provavelmente saber executar esse passo fundamental. Também pensam em mundos possíveis de passos de acordo com as combinações de conceitos de objetos e propriedades que detêm, o que na prática se transforma em horas de treino para tentar executar um passo pensado.
O processo criativo do breaking envolve a tentativa de execução de combinações entre objetos e propriedades para obter objetos totalmente novos. É importante pensar “chair freeze tem hook” e executá-lo, mas também é interessante pensar: e se o “chair freeze” tiver “thread” ou for “circular”? E se todos os passos tiverem “hook”, “thread”, “pretzel”, “sweeps” ou “spider”? O que não está no meu repertório conceitual em virtude da riqueza de detalhes da percepção em relação aos conceitos, que me permitem perceber objetos e propriedade no tempo e espaço, mas não conceituar na mesma proporção?
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
EVANS, Gareth. The Varieties of Reference. New York: Oxford University Press, 1982.
SCHLOSS, Joseph. Foundation B-Boys, B-Girls, and Hip-Hop Culture in New York. New York: Oxford University Press, 2009.
[1] Psicólogo, Doutor em Psicologia, Professor Adjunto na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. alberto.mesaque@ufms.br
[2] Ver o livro Foundation: B-Boys, B-Girls, and Hip-Hop Culture in New York de Joseph Schloss.
O artigo é o 13º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.