[Coautores: Vítor Hugo dos Reis Costa[1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
Otto Rank (1884–1939) foi um ilustre psicanalista que por muitos anos foi reconhecido como um dos colaboradores mais próximos de Sigmund Freud. Em 1912, ele defendeu uma tese de doutorado em filosofia intitulada Die Lohengrinsage, que é considerada a primeira tese baseada nos estudos psicanalíticos da Universidade de Viena (PADOVAN; MULLER, 2016). Em sua tese, Rank analisa e interpreta a lenda do cavaleiro Lohengrin, personagem das lendas arturianas que inspirou Richard Wagner a compor uma ópera romântica em três atos. Isso significa que Rank foi um dos primeiros pesquisadores a estudar mitologia por meio da aplicação do método psicanalítico.
Em um de seus livros mais famosos, O mito do nascimento do herói (1909/2020), Rank analisa os estereótipos de lendas de heróis e compara os sonhos cotidianos com os mitos clássicos, observando que mitos de diferentes civilizações apresentavam muitas semelhanças entre si, chamando as repetições das narrativas míticas de “lenda-padrão”. Os temas mais recorrentes da lenda-padrão são: o herói descende da alta nobreza, seu nascimento é precedido por grandes obstáculos, a manifestação de uma profecia alertará o perigo que o nascimento do menino causará ao pai, a tentativa do pai de livrar-se da criança, o menino é salvo por animais ou por pessoas humildes, o herói reencontra seus genitores após tornar-se adulto e, por fim, vinga-se de seu pai conquistando poder e fama.
Para compreender melhor o simbolismo por trás dos estereótipos da lenda- padrão, Rank comparou-os com a dinâmica do “romance familiar”, que é um conceito desenvolvido inicialmente por Freud em seu ensaio “O romance familiar dos neuróticos” (1909), que ilustra o processo de independência da autoridade dos pais através das fantasias infantis. Em um primeiro momento, as crianças têm uma visão idealizada dos pais, mas conforme vão crescendo e conhecendo outras pessoas, passam a fantasiar a possibilidade de seus pais biológicos serem outros, provavelmente de classe mais alta. Tais fantasias estão estreitamente relacionadas com o complexo de Édipo, em que a criança se afeiçoa mais ao genitor do sexo oposto, rivalizando com o genitor do mesmo sexo. Freud (1909/2010) também afirma que essas fantasias representam a saudade que as crianças têm dos pais idealizados do passado.
Inspirado pela obra de Freud, Rank visualiza os mitos como “sonhos coletivos” que concretizam a realização dos nossos desejos infantis. Assim, a sobrevalorização que as crianças fazem dos pais na primeira infância é representada nos mitos quando o herói é apresentado como filho biológico de pais ilustres, mesmo que tenha sido criado por pais humildes. A rejeição que muitos heróis mitológicos sofrem por seus pais seria a representação dos sentimentos de hostilidade que as crianças sentem em relação ao pai durante o “romance familiar”, ou seja, quando os mitos narram as tentativas dos pais de se livrarem dos filhos, eles estão, na verdade, ilustrando o desejo da criança de libertar-se do jugo paterno.
Projetamos nessas fantasias o nosso processo de crescimento e o desejo de independência da autoridade paterna e, assim, os mitos como “sonhos coletivos” seriam a justificação de cada indivíduo contra o pai que o oprimia na tentativa de evitar que ele se tornasse um herói no futuro (RANK, 2020). Por isso que, em muitos mitos, o herói só ascende ao trono após matar o pai (ou o personagem que representa a figura paterna), mesmo que o assassinato não tenha sido intencional, como observamos nos mitos de Perseu e de Édipo.
Percebemos então que, ao trazer o “romance familiar” para a psicanálise aplicada aos estudos de mitologia comparada, Rank retira as fantasias infantis do campo privado e as analisa no campo coletivo. Ele interpreta o herói mitológico como um “eu coletivo” que ilustra nossos desejos e anseios, ou seja, através das narrativas míticas todos nós podemos nos sentir heróis também, já que nos identificamos com suas dificuldades e realizações.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
FREUD, Sigmund. O romance familiar dos neuróticos. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, v. 8. Tradução de Paulo César de Souza. Companhia das Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 295-298.
RANK, Otto.Uma contribuição sobre o narcisismo [Trad. C. Padovan; N. Müller]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -2, p. 2, 2016. Disponível em: https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-02/. Acesso em: 24 jul. 2023.
RANK, Otto. O mito do nascimento do herói. Tradução de Constantino Luz de Medeiros. São Paulo: Cienbook, 2020.
[1] Pós-doutorando em Filosofia (CNPq/FAPERJ) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor, mestre e graduado em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: costavhr@gmail.com
[2] Professor do curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. Email: weiny.freitas@ufms.br.
O artigo é o 14º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.