[Coautores: Maíra de Souza Borba[1]e Jonathan Postaue Marques[2]]
Definir o conceito de liberdade com exatidão, de modo imediato, é uma tarefa complexa, visto que, quando falamos sobre liberdade, estamos lidando com um termo abstrato. As abstrações dependem da racionalidade, é necessário pensá-las e analisá-las para só então estabelecer um significado. Elas são somente um reflexo do mundo que vivemos, daí deriva o termo reflexão. Já dizia Schopenhauer, em seu livro O mundo como vontade e representação (1818), que as abstrações são secundárias, o contato sensível com o mundo é sempre imediato. Isso faz com que as abstrações não sejam dadas de forma instantânea, por isso a dificuldade de definir ou conceber imediatamente um conceito. Sendo assim, a liberdade como conceito pode ceder espaço para diversas interpretações, mas a definição de que a liberdade é uma possibilidade de escolha guiada pelo próprio desejo é unânime entre os indivíduos.
Muitos filósofos, de diferentes períodos, dispuseram-se a definir o conceito de liberdade de acordo com seus preceitos, e algumas dessas definições estão longe de serem agradáveis a um público amplo, por destoarem das significações tradicionais. Talvez este seja o caso da definição determinista de Baruch Spinoza (1632-1677).
A teoria filosófica proposta por Spinoza pode causar estranhamento e aversão em um primeiro momento, tal como foi em sua época; isso porque ela se mostra antagônica à tradição cristã. Antes de partir para o conceito de liberdade propriamente dito, faz-se necessário compreender como o filósofo concebe a ideia de Deus, afinal, o desenvolvimento de sua filosofia é uma consequência do significado que ele dá a esse conceito.
No cristianismo, Deus é definido como um Ser inteligível, criador do mundo, tal qual o conhecemos (céu e terra), e do ser humano, uma de suas maiores investidas, a ponto de tê-lo criado à sua imagem e semelhança (o que nos leva a pensar que Deus tem a fisionomia de um homem); um Ser transcendente, onisciente, onipotente, que está em algum lugar acima de nós (mas não se sabe ao certo onde), nos observando, julgando e nos punindo quando necessário (para o nosso próprio bem), atendendo aos nossos pedidos, controlando os acontecimentos do mundo, etc. Para Spinoza, isso tudo soa absurdo.
Em seu livro Ética (1677), Spinoza define Deus como a única substância existente, substância esta que tem infinitos atributos. Mesmo que o Deus de Spinoza seja um ente de infinitos atributos, os únicos os quais somos capazes de conhecer são a extensão e o pensamento, afinal, somos modos de tais atributos. A “extensão” categoriza tudo aquilo que é material e é dotado de um corpo físico, enquanto o atributo “pensamento” classifica coisas de ordem inteligível, por exemplo, a mente, as ideias etc. Spinoza compreende que Deus também tem algo de material em sua composição e não apenas metafísico. Isso pode nos fazer pensar que: se Deus tem um corpo físico, ele está em algum lugar no mundo. Na realidade, nesse caso, Deus não apenas está no mundo, ele é o próprio mundo, trata-se de um Deus imanente e esta característica da filosofia de Spinoza é totalmente distinta da concepção de um Deus transcendente, conforme define o cristianismo.
Em resumo, para Spinoza, existe apenas uma única substância infinita: Deus. Dessa substância surgem os modos substanciais, isto é, tudo o que conhecemos, desde um pequeno grão de areia até a galáxia mais distante. Deus, nesse caso, é o primeiro e único ponto, sua singular existência coloca em atividade uma cadeia de causas infinitas e tudo o que emana dessa cadeia é determinado por uma relação causal, iniciada na substância. Sendo assim, não existe acaso, não adianta rezar ou pedir que o próximo bilhete sorteado na loteria seja o seu. Todos os acontecimentos do mundo, incluindo o nascimento dos astros e de quaisquer tipos de espécies orgânicas e inorgânicas, são predeterminados e necessários, logo, são exatamente do jeito que deveriam ser.
Ora, se tudo que existe no mundo, desde marcos históricos extremamente importantes até a minha ínfima escolha de ter comido macarrão em vez de arroz na noite de ontem, foi predeterminado por essa tal cadeia causal, então, eu não sou livre para fazer escolhas? O que é ser livre, afinal?
Com relação à liberdade, Spinoza (2009) define como livre apenas aquilo que existe exclusivamente pela necessidade de sua própria natureza e por si só é determinado a agir. Sendo assim, ter vontade ou ter capacidade de fazer escolhas não é o mesmo que ter liberdade. A liberdade está circunscrita apenas àquilo que existe por necessidade intrínseca da sua própria natureza, nesse caso o único ser livre existente é Deus. Apenas Deus existe sem que haja outra coisa que o determine a existir ou a agir. Deus, portanto, é causa de si mesmo. Nós só existimos porque algo fez com que nossa existência fosse possível, consequentemente, não somos livres. Nossa existência não passa de mera contingência, poderíamos tanto existir quanto não existir. Nossa inexistência não implica a não existência do mundo. Em contrapartida, a existência de Deus é necessária, caso ele não exista, nada existe. Conclui-se que, para Spinoza, o único ser necessário e absolutamente livre é Deus. Mas e nós? É possível que sejamos livres em alguma medida?
Os seres humanos podem dispor de uma liberdade relativa. O caminho para alcançar essa tal liberdade depende do conhecimento, em última instância, do conhecimento de Deus. Porém, é necessário que tenhamos também o conhecimento daquilo que pode nos afetar, e afetar o nosso conatus. Conatus é um termo que Spinoza utiliza para designar um esforço de sobrevivência, presente na natureza humana; é aquilo que nos estimula a buscar bem-estar; é a nossa potência de agir. Quando estamos doentes, por exemplo, buscamos formas de melhorar o mais rápido possível, seja tomando remédios, seja melhorando a alimentação ou a hidratação do nosso corpo. Nosso conatus precisa estar elevado para que estejamos bem, tanto fisica quanto mentalmente.
Conhecer as causas que nos determinam, agir de acordo com a razão e com nosso conatus – esses são elementos essenciais para que tenhamos o mínimo de controle sobre as nossas vidas e assim passemos a usufruir de uma liberdade relativa, já que absolutamente livres nunca seremos. Portanto, quanto mais conhecimento adquirimos, mais livres nos tornamos. Segue-se daí que uma das formas de o ser humano alcançar a liberdade é praticar o ato de conhecer. Literalmente, o conhecimento liberta.
[Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 47-59.
SCRUTON, R. Espinosa. São Paulo: UNESP, 2000. p.28. (Coleção Grandes Filósofos)
SPINOZA, B. Ética. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009
[1] Doutora em Filosofia pela UFMG e pela Université Paris I, com especialidade em História da Filosofia Moderna e Epistemologia. Professora adjunta dos cursos de graduação e mestrado em filosofia da UFMS. E-mail: maira.borba@ufms.br
[2]Professor de Filosofia da Secretaria de Estado de Mato Grosso do Sul (SED/MS). E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o 17º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.
- Psicanálise, velhice, tempo e luto, de Matheus Garcia Nunes, Weiny César Freitas Pinto e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/09/psicanalise-velhice-tempo-e-luto/.