Quando o leitor vira a última página do livro mais recente de Byung-Chul Han, outro dele já está sendo lançado. Han é um dos pensadores mais consagrados e prolíferos da atualidade. Sua obra está quase toda traduzida no Brasil. E ele produz muito mesmo!
Desde que publicou sua tese de doutorado sobre Martin Heidegger (O coração de Heidegger), em 1996, já são 31 livros, em 27 anos. A crise da narração, por exemplo, objeto desta resenha, foi publicado originalmente em março de 2023 e em novembro já havia uma versão em português, com tradução do original em alemão feita por Daniel Guilhermino (Vozes, 2023).
Han nasceu e se criou na Coreia do Sul, mas desde os 22 anos de idade mora na Alemanha, onde se formou. Por isso, escreve sua obra na língua de Mefistófeles. Atualmente, é professor de filosofia e estudos culturais na Universidade de Berlim.
A ironia posta em A crise da narração é que a filosofia, que está sempre nadando no oceano da crise, tem agora de falar da crise da maior plataforma da cultura verbal que serve a quase todas as linguagens.
Até mesmo o pensamento tem dificuldade de transitar sem os mecanismos da narração, quem dirá as emoções em sua necessidade de se assentar no coração dos homens como tradição de afeto e civilidade. Todos se afundam numa inércia inefável e inamovível, enquanto veem a informação, soberana dos bits e dos dados, diluir as fronteiras de tudo.
O domínio da narração cria as narrativas. Se aquela se põe em crise, estas entram numa espiral de suspeição, de insignificância, de meras invenções sem alma, sem vinculação, sem desfecho. É a tese de Han.
E, assim, o que passa a dominar as costuras sociais é a informação, que produz um híbrido pernicioso chamado de storytelling, que engravidou a sociedade de consumo. As narrações formam cidadãos, criam comunidades. As storytelling criam community na forma de commodity.
Tudo é mercadoria. “Storytelling é storyselling”, comenta Han. Na comunidade/commodity, tudo está sendo dito de acordo com um script para vender alguma coisa, inclusive as pessoas, que, ao se tornarem produto, distanciam-se do próprio ser.
“É inerente à sociedade da informação uma carência de ser, um esquecimento do ser”, diz Han, bem ao gosto da filosofia de Heidegger e dos que os sucederam, como Peter Sloterdijk. Para Heidegger, a técnica é o esquecimento do ser. A storytelling (na interpretação do termo por Han) se encaixa exatamente no seio da técnica.
As narrações criam âncoras narrativas, produzem histórias que “conectam as pessoas umas com as outras”, “fomentando a capacidade de empatia”. “A narração pressupõe escuta e uma atenção profunda”, pondera o filósofo sul-coreano.
Ao contrário de uma comunidade narrativa, que é estável, detentora de âncoras, a comunidade/commodity da storytelling “representa um fenômeno patológico do presente”, vicejando num imenso mar de solidão, um mundo sem porteira de consumidores solitários.
“Estamos hoje, portanto, muito bem-informados, mas desorientados”, observa Han. Para falar do presente, ele recua no passado e mergulha no mar da crise, indo até a fossa abissal de sua gênese para investigar sua longa pré-história, a partir do início do capitalismo, ou seja, o princípio da modernidade.
Ali, a mecha do humano, espiral de construção de identidades, começa a definhar, segundo Han. Ali, a narração começa a perder espaço para a ideia de informação, que é ligeira, incisiva, assassina da imaginação e da distensão do tempo.
Sem a distensão do tempo, não há experiência. Há apenas uma sucessão de ilhas, ou bolhas. A informação não comunica mais nada, no sentido de tornar comum uma experiência de vida, mesmo porque, não há mais experiência de vida, tudo é fragmento.
Han recorre a Walter Benjamin para argumentar sobre como tudo isso começou a acontecer. A narração começa a declinar com o surgimento do romance na ascensão da modernidade, diz Han, citando Benjamim.
“A narração se alimenta da experiência e a transmite de uma geração para a outra”, observa Han. Já o romance produz perplexidade. “Enquanto a narração é formadora de uma comunidade, a gênese do romance está no indivíduo em sua solidão e isolamento.”
Retorno ao caos
O que Han está dizendo é que a tradição não vale mais nada, e se ela não tem valor, a narração é dispensável, porque esta se ancora naquela. A experiência só pode ser repassada no duto narrativo. Se ninguém se importa com a experiência, para que servem os sábios e a arte de narrar?
O interessante desse esforço todo de crítica à modernidade é que Han usa a experiência do romance (primeiro sintoma da crise narrativa, segundo ele) para argumentar sobre a crise da experiência do viver. Cita Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, que “tenta combater a atrofia temporal, a perda do tempo que se dá na forma de uma atrofia muscular.”
Cita A náusea, de Jean-Paul Sartre, para mostrar a percepção moderna do mundo de que a vida não tem sentido nenhum. Essa falta de sentido, para Han, se deve à queda do edifício da narração, sustentada pela importância que se dava às experiências de vida, à sabedoria dos fios de relatos que teciam o significado da vida. Hoje, não mais.
O autor está perplexo pelo fim de um jeito de viver. É bonita a reflexão de Han, é bonito o jeito que ele escreve. Mas sua escrita é algo novo falando sobre uma sensação velha, para quem sabe viver na contemporaneidade.
Sua crítica traduz os pensadores que escreveram difícil, como Nietzsche, que, em O nascimento da tragédia, no século XIX, apresentou uma tese interessante sobre a existência humana e sua trágica tomada de consciência de que o melhor para o homem seria morrer.
A modernidade é isso, uma queda permanente, um abismo insondável, um retorno ao caos. Tudo que foi construído, com esforço, pela experiência das narrativas desde os gregos, está ruindo mesmo.
Para Han, o sustentáculo dessa miséria é a sociedade da informação, um monstro que engoliu tudo, inclusive a ideia de imprensa. A informação é uma luminosidade efêmera, que se apaga assim que acende para que outra luz pisque. A realidade é o que se vê nesse lusco-fusco. E cada vez que a luz clareia, a realidade já é outra.
“Somente o momento importa. Snaps são um sinônimo de ‘realidades momentâneas’. Por isso, eles desaparecem após um curto tempo. A própria realidade se desintegra em snaps. Dessa forma, somos arrancados da ancoragem temporal estabilizadora. Os ‘stories’ das plataformas digitais, como Instagram ou Facebook, não são narrações em sentido autêntico. Eles não possuem duração narrativa. São meras sequências de fotos momentâneas que não narram nada. Na realidade, eles não passam de informações visuais que desaparecem rapidamente. Nada permanece”, diz o filósofo sul-coreano.
Bússolas novas
No final, o que Han está vendo é a crise da humanidade, que sempre foi frincha da existência da própria filosofia e sua razão de ser. A crise da narração é, portanto, a crise do humano.
A crise da narração é a ameaça do fim de uma trajetória dos sentimentos, da imaginação, da emoção, dos afetos e até do vacilo da razão. Neste caso, sobraria apenas a frieza dos cálculos, dos algoritmos, quando as storytelling já teriam dominado o espaço onde antes havia uma consciência.
O resgate da narração, da valorização da experiência coletiva, seria a cura. Não sei se concordo com Han na ideia de que só a narração salva. De fato, tudo mudou, mas voltar a velhas âncoras, receio que não seja possível.
Além disso, a narração é um elemento poderoso demais para acabar assim. Há uma crise do humano, no sentido de que a fundamentação do que se considera humano está ancorada nas narrativas humanistas.
As peças do tabuleiro e seus vetores talvez estejam mudando. Mas o jogo social ainda é o velho jogo de disputas, em que uma minoria poderosa faz de tudo para explorar o restante da humanidade. Neste contexto, o que vêm prevalecendo no imaginário social são as falsas narrativas.
A grande pergunta permanece: onde está a sabedoria para nos guiar? Como encontrá-la em meio à crise exposta por Han? De fato, precisamos construir bússolas novas que nos aponte para novos espaços. O Norte, de fato, parece não estar no mesmo lugar, ou perdeu seu poder magnético.
No capítulo intitulado “Do choque ao like”, Han insere na sua reflexão a falência da arte também, a arte do like das redes sociais, a arte do choque imediato, da lacração, para a qual volta sua crítica.
Mas a arte está viva, inclusive a arte de narrar. Ainda podemos experimentar uma arte criadora de narrativas, inspiradora de narrações, cuja linguagem vai além disso. Há ainda uma arte com perspectivas de rearranjos de espaços e esforço de imaginação, que imprime o mundo e a vida. E esta é a melhor ferramenta para provocar mudanças e conquistas.
Esta arte tem como mais poderoso, em sua construção, a capacidade de questionar o poder, o mesmo poder (a necropolítica, por exemplo) que hoje vislumbra a queda do humano, que se sustenta pela manipulação da informação (fake news etc.) e seus dados “bíticos”.
Ela é ainda o lugar da resistência do humano. Ela está aí, no teatro, no cinema, na literatura, na música, até mesmo nas plataformas de streaming, ainda que seja como uma utopia resistindo no território distópico do mundo. O mundo sempre foi distópico. A arte tende a ser resistência sempre.