Jacques Collin, dom Carlos Herrera, Monsieur de Saint-Estève, Trompe-la-Mort (Engana-a-Morte) ou simplesmente Vautrin. São muitas as alcunhas de uma das personagens mais fascinantes criadas pelo gênio de Balzac na sua Comédia humana. Mestre dos disfarces, sedutor e corruptor de jovens rapazes, o herói-bandido leitor de Rousseau que formula uma “teoria da revolta” para confrontar o sistema e depois se tornar um de seus agentes – Vautrin tem uma personalidade tão complexa e multifacetada que o seu real caráter só se revela inteiramente após a leitura da trilogia formada pelos romances O pai Goriot, Ilusões perdidas e Esplendores e misérias das cortesãs, que, no conjunto de mais de 90 obras distribuídas ao longo de 17 volumes (na edição brasileira) da Comédia balzaquiana, formam, como bem observa o crítico Paulo Rónai, uma único livro, “de proporções enormes”.
Essa figura enigmática e singular que se destaca em meio à galeria de mais de 3 mil personagens que transitam na obra monumental de Balzac teve como modelo uma pessoa da vida real, tão controvertida e misteriosa quanto o seu congênere fictício. Eugène Vidocq (1775-1857) foi um criminoso célebre que, após escapar por diversas vezes da prisão e cansado da vida errante como contrabandista e falsário, resolveu oferecer seus serviços à polícia francesa como informante e acabou se tornando chefe de brigada das forças de segurança de Paris durante a década de 1820. Da mesma maneira que sua própria trajetória, os métodos de Vidocq como agente policial também eram pouco ortodoxos – ele formou uma rede de ex-condenados para auxiliá-lo nas investigações e, valendo-se da sua habilidade em se disfarçar, penetrava em qualquer ambiente em busca de pistas. Apesar das críticas dos desafetos, durante a sua carreira policial Vidocq conseguiu de fato baixar os índices de criminalidade e introduzir técnicas de investigação inovadoras para a época.
Muitos dos aspectos da vida e do caráter de Vidocq são reapropriados e recriados por Balzac – que conheceu de fato o ex-criminoso e ex-policial francês – na composição da personalidade de Vautrin. Entretanto, se partiu de um modelo real para concebê-lo, Balzac não se limitou a isso – também transformou esse controverso personagem em uma espécie de porta-voz para expor a sua própria visão crítica da sociedade francesa da primeira metade do século XIX, particularmente da sua parcela burguesa, denunciando a sua falsa moral, a sua hipocrisia, as suas contradições. Vautrin, o malandro homossexual que bem poderia ter saído das páginas de um romance de Jean Genet, vinga-se do meio social burguês que o rejeita de forma dissimulada e insidiosa, como um agente do caos, corrompendo e pervertendo. E, ao agir assim, ainda deixa mais manifesta toda a podridão desse ambiente.
A primeira aparição da personagem ocorre em O pai Goriot, sob o disfarce de um negociante bem-sucedido, embora o riso fácil e a premência de parecer generoso e sempre à disposição dos outros traiam uma certa vulgaridade e a preocupação de quem tem algo a esconder. Vautrin, como ele se apresenta, é um dos residentes da pensão de Madame Vauquer, cenário principal da trama, que abriga pequenos rentistas, como o próprio père Goriot do título, e jovens vindos do interior para prosseguir com seus estudos em Paris, a exemplo de Rastignac, o protagonista da história.
Romance de formação, O pai Goriot narra como o jovem Rastignac, que chega à capital francesa repleto de ideais e boas intenções, vai aos poucos perdendo a ingenuidade e abrindo mão dos princípios para ser aceito no ambiente exclusivo da alta burguesia e da aristocracia. Nesse aprendizado da vida real, Rastignac conta com dois mestres: o primeiro é Goriot, que o acolhe como um filho, e o segundo é justamente Vautrin, que procura seduzi-lo e torná-lo uma espécie de discípulo, prometendo-lhe fortuna e poder. Entre o exemplo de abnegação de Goriot, o qual consome toda a sua fortuna para sustentar o luxo das duas filhas, e as tentativas de aliciamento de Vautrin, Rastignac vai se empenhar para seguir um caminho independente. Porém, evidentemente, a retórica mefistofélica de Vautrin exercerá um poder de atração muito maior sobre ele.
No célebre trecho do livro em que Vautrin expõe a sua “filosofia da revolta” a Rastignac, ele proclama que, para o indivíduo sobreviver em meio à “selva” de Paris, só há dois partidos a tomar: “ou uma obediência estúpida ou a revolta”. Esse movimento de rebelião requer o “brilho do gênio” ou os artifícios da corrupção. Como o talento é raro – e, ainda por cima, costuma ser perseguido – resta a segunda opção, porque “a honestidade não serve para nada”. “Não há princípios, há apenas acontecimentos; não há leis, há apenas circunstâncias: o homem superior esposa os acontecimentos e as circunstâncias para conduzi-los. Se houvesse princípios e leis fixas, os povos não mudariam como nós mudamos de camisa”, ensina ele a Rastignac. Como um dedicado pupilo, o estudante vai absorver cada palavra da lição ministrada pelo mestre. Mas não a ponto de tornar-se um comparsa dele em uma trama assassina.
Além do mais, Vautrin sai de cena já quase ao final de O pai Goriot, deixando o caminho livre para Rastignac encontrar os próprios meios para alcançar fortuna e prestígio – o que ele fará com muito êxito, ao se tornar amante de uma aristocrata e frequentador das altas rodas parisienses, como pode ser constatado em Ilusões perdidas, em que o destino de Rastignac é citado apenas de passagem. Já Vautrin tem a infelicidade de cair em uma armadilha preparada por dois informantes da polícia que expõem aos olhos do público da pensão Vauquer e das autoridades policiais a infâmia que ele carregava no corpo e procurava a todo custo ocultar: como gado, Vautrin fora marcado a ferro com as iniciais TF (travaux forcés). Ao ter esse estigma revelado, o outrora aparentemente respeitável negociante se transforma, como em um passe de mágica, em Jacques Collin, conhecido como Trompe-la-Mort, condenado a 20 anos de trabalhos forçados por diversos crimes e foragido da prisão.
No momento em que é desmascarado, toda a fachada do cavalheiro solícito e cordial que ele se esforçava em ostentar dá lugar à expressão feroz do evadido rebelde, que desafia a todos com um olhar “de um arcanjo decaído que continua a querer a guerra”, como descreve Balzac. Capturado novamente, Vautrin não se deixa abater, insistindo no seu combate individual e anárquico contra o status quo, em uma apropriação um tanto enviesada de Rousseau, do qual ele se diz seguidor: “Um forçado da têmpera de Collin, aqui presente, é um homem menos covarde que os outros, e que protesta contra as profundas decepções do contrato social, como diz Jean-Jacques, do qual eu me glorifico de ser aluno. Enfim, estou só contra o governo, com a sua montanha de tribunais, de policiais, de orçamentos – e os derroto”.
A reaparição da personagem em Ilusões perdidas, já perto da conclusão do romance, não é menos surpreendente. Depois de enfrentar todo tipo de vicissitudes – da carreira promissora de um jovem poeta provinciano, passando pelo êxito literário e jornalístico em Paris, até uma completa derrocada social e financeira, que deixa também sua família em ruínas –, o jovem Lucien de Rubempré, o herói da história, resolve se suicidar em um lago nas proximidades da sua cidade natal, Angoulême. Quando se dirige ao local onde pretende dar cabo de sua vida, como uma aparição sobrenatural, D. Carlos Herrera, um bispo espanhol, surge subitamente e o salva. Mas esse desfecho inesperado não tem nada de uma conversão religiosa e moral do jovem poeta. Nas primeiras palavras do padre, fica claro para quem já tinha lido O pai Goriot que se trata do retorno triunfal de Vautrin, agora sob as vestes de um membro da Igreja.
Em Lucien, D. Carlos/Vautrin encontrará uma presa muito mais dócil do que Rastignac. Neste último, ele conseguira perceber, logo no primeiro encontro, uma forte ambição, ainda sufocada por um ingênuo idealismo juvenil, que só precisava de algum incentivo para desabrochar por inteiro. O seu discurso cínico abala de fato as convicções morais não muitos firmes do jovem pensionista de madame Vauquer, mas Rastignac tem um caráter suficientemente forte para desafiar a sociedade francesa, como ele proclama ao final de O pai Goriot, sozinho e à sua maneira. Lucien, por sua vez, revela-se o perfeito discípulo de quem Vautrin está à procura: inconstante, frágil, autoiludido com as suas aparentes boas intenções, as quais ele sacrifica sem pestanejar à primeira proposta de fortuna e sucesso. Quando o falso bispo espanhol lhe pergunta se ele sofre de uma doença incurável para chegar ao ponto de tentar tirar a própria vida e Lucien responde “sim”, dizendo que essa moléstia é a pobreza, D. Carlos/Vautrin mal dissimula a imensa satisfação que sente. “O diamante ignora o seu valor”, afirma, com um sorriso irônico.
Com uma beleza angelical, quase feminina, Lucien se renderá ao desejo sexual de Vautrin, porém, será, sobretudo, o instrumento do ex-forçado, agora sob o disfarce de um religioso, para “conquistar” Paris, na sua obstinação em se tornar parte do sistema para melhor confrontá-lo e corrompê-lo. A forma como Vautrin conseguiu escapar da prisão e se metamorfosear em um bispo católico só será revelada ao leitor em Esplendores e misérias das cortesãs, quando o pacto luciferiano entre Lucien de Rubempré e D. Carlos Herrera renderá à dupla riqueza e poder, um triunfo seguido de um declínio não menos fenomenal. Mas como um perfeito camaleão, Vautrin mais uma vez conseguirá se safar e, depois de muitas peripécias, terminará a trama como chefe da polícia francesa, fazendo exatamente o mesmo percurso do Vidocq da vida real.
Vautrin ainda aparece em outro romance inacabado de Balzac, denominado O deputado de Arcis, em uma peça de teatro que leva o nome da personagem e também é mencionado em dois outros romances da série balzaquiana, A prima Bete e O contrato de casamento. Com esse personagem ambíguo, Balzac foi um dos primeiros romancistas do século XIX a tratar abertamente o tema da homossexualidade na literatura. Mas o diabólico Vautrin tem uma simbologia na sua obra que vai muito além: ele, o homem das máscaras e dos disfarces, é aquele que confronta a impostura da sociedade burguesa e revela sua verdadeira face, nessa melancólica comédia humana.