A ética meritocrática parte do princípio de que uma pessoa consegue, independentemente do seu ponto de partida, sucesso graças aos seus esforços. Essa falácia, muito disseminada pelos coachs de autoajuda nas redes sociais, pode ser descrita nas famosas frases motivacionais: “Basta querer e você alcançará todos os seus objetivos” ou “Você consegue, se tentar”. Trata-se de um discurso bastante sedutor, embora falacioso, como apontaremos ao longo deste texto.
A retórica meritocrática cria a falsa impressão de que, se você não alcançar o sucesso desejado, é pelo fato de que não se esforçou o suficiente. O grande problema é que, como bem observa o filósofo estadunidense Michael J. Sandel na obra A tirania do mérito, todo esse discurso gera o que ele chama de “política da humilhação”, com os vencedores de um lado e os perdedores do outro. Para quem não consegue ascensão econômica, é complicado escapar do pensamento desmoralizante de que o fracasso é resultado de sua própria incompetência.
A sociedade que valoriza o inteligente e menospreza o “burro” parte da noção de que o sistema de sucesso está tão somente atrelado às próprias ações dos indivíduos. Podemos perceber claramente essa ideia disseminada nas redes quando os usuários alardeiam alguma conquista como sinônimo de “vencer na vida”, seja a compra de um carro, seja a aprovação em vestibular ou concurso público, seja a admissão em um novo emprego. Tais postagens geram a ideia de que, se você ainda não alcançou tais conquistas, foi porque não se esforçou o suficiente. Por isso, o único responsável pelo seu fracasso é você mesmo, sem levar em consideração as questões que estão para além da responsabilidade individual. Como afirma Sandel:
A arrogância meritocrática reflete a tendência dos vencedores de ignorar a sorte e o destino que os ajudaram ao longo do caminho. É a convicção presunçosa de que as pessoas que chegaram ao topo merecem esse destino e que aqueles abaixo merecem o deles também. (SANDEL, 2023, p. 38).
O ideal meritocrático atribui um grande peso à responsabilidade individual, sem levar em consideração questões biológicas, culturais e sociais. Isso demonstra que as pessoas são pouco críticas em relação às desigualdades sociais, por exemplo. De acordo com Sandel: “Quando o 1% dos mais ricos recebe mais do que toda a metade inferior da população, e a receita média fica estagnada por quarenta anos, a ideia de que esforço e trabalho árduo o levarão longe parece vazia” (2023, p. 105). É uma arrogância meritocrática acreditar que as pessoas têm oportunidades iguais para alcançar o “sucesso” apenas levando em consideração seus talentos e seu trabalho árduo. O discurso meritocrático conduz à falsa impressão de que todas as pessoas têm oportunidades iguais para alcançar a linha de chegada, não importando que alguns terão mais dificuldade no percurso, que alguns terão vantagens ainda na largada, e que outros não conseguirão nem dar início à corrida.
No Brasil, é comum atribuir somente ao indivíduo a culpa por não ter conseguido um diploma universitário, por exemplo. Além disso, está implícita a ideia de que a conquista educacional é um meio para superar as desigualdades sociais. Logo, a desigualdade deixa de ser um fracasso do sistema e torna-se um fracasso do indivíduo. Podemos salientar também que é um discurso corriqueiro de uma parte da esquerda brasileira apontar a classe trabalhadora com menos instrução intelectual como “burra” para desqualificar sua defesa de algumas ideias neoliberais.
Segundo Sandel (2023), pesquisas realizadas no Reino Unido apontam que pessoas com formação universitária alimentam mais preconceitos contra pessoas que não têm uma formação superior do que contra outros grupos desfavorecidos. No Brasil, esse fator gerou uma onda de ressentimento tão forte que culminou na vitória do presidente Bolsonaro em 2018, que tinha discursos tão extremistas a ponto de negar o conhecimento científico e atacar diversas vezes os cursos de ciências humanas. Quando eleito, cortou 30% do orçamento das universidades federais, bloqueou bolsas da Capes e até solicitou a presença de policiais para coibir um suposto “viés ideológico” nas universidades. O fato é que, mais do que enaltecer pessoas com diploma universitário, é importante reconhecer a dignidade do trabalho em todos os segmentos. O gari, o bombeiro hidráulico, o motorista de ônibus deveriam ser tão respeitados pela contribuição ao bem comum quanto os médicos, engenheiros e advogados.
Que a meritocracia é uma piada de péssimo gosto é inegável. É evidente também que hoje, no Brasil, não temos igualdade de condições, e é muito cruel responsabilizar um indivíduo pelo seu fracasso sem levar em consideração que são raros os espaços públicos que agrupam pessoas de diferentes classes, raças, orientações sexuais, etnias e religiões. Fiquemos atentos para não sermos levados pelo discurso sedutor de que a liberdade individual é a chave para realizarmos todos os nossos sonhos, que conseguiremos qualquer coisa se tentarmos, e que o destino está em nossas mãos. A meritocracia está longe de ser uma resposta eficaz para o problema da desigualdade; pelo contrário, ela nos torna menos solidários, mais arrogantes e nos afasta de um projeto democrático que visa ampla igualdade de condições, permitindo que todos vivam com dignidade.
REFERÊNCIAS
SANDEL, M. J. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2023.