[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
elegia
Primeiro, fatos: uma
fuselagem de penas
há pouco destroçada
no asfalto, por assim
dizer, indiferente
às mesmas, antes brancas,
que, se já não contestam
a hegemonia cinza
do acaso ao fim da tarde
exceto pela mancha
vermelho-suja, ou seja,
o voo em negativo
de vísceras explícitas,
sugerem, todavia, o
que, sem dúvida, fora
um pombo. Nada trágico:
um episódio apenas
na sequência total de
fenômenos anônimos
e além disso complexos
demais para a cabeça
de um pássaro, aliás,
somente uma cloaca
volante, ameaçando a
tranquilidade asséptica
dos pedestres. Contudo,
na reformulação de
seus componentes, algo,
anódino talvez, se
perdeu. – Mesmo o poema,
na melhor das hipóteses,
não passa de uma autópsia.
Ponta da língua (1983)
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[2]
Fim das contas
Tudo o que conta é menos
que o mais indivisível,
mais ínfimo fragmento
que, menos que o pensado,
menos que o dito, menos
que o escrito, ainda menos
que o extrato publicado
do irredutível mínimo
sumário do mais breve
que a máxima, epigrama
gravado em grão de areia,
partícula invisível
ao olho não só nu
como vestindo lentes
de exorbitante aumento,
resume-se à parcela
menor da mais lacônica
sinopse taquigráfica
de um aforismo expresso
pelo estilhaço mais
minúsculo da mais
subdividida inter-
jeição quase inaudível
que diz mais do que fala
e mais cala que diz
nas entrelinhas, entre
um som mal concluído
e um outro nem sequer
bem começado, ponto
de fuga do mais mudo
fonema do silêncio:
tudo o que conta é menos.
O sonho da razão (1993)
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[3]
Deitada de bruços
Segundo a pincelada
que, súbito, um calígrafo
traçasse da cerviz
ao cóccix, delineia-se,
no avesso do papel
de arroz em que a tensão
dos músculos transforma
a pele ao retesá-la,
não tanto uma coluna
dorsal quanto – serpente
cuja intenção jamais
se expõe, salvo no lapso
entre tocaia e bote –
a hipótese de, em torno
ao próprio eixo, a espinha
se contorcer tão látex
que, vertebrando sub-
cutânea o cerne imóvel
da mais perfeita inércia,
suponha um coreógrafo
capaz de destilar
sem pressa a extrema dança
que, implícita nas formas,
dispensa o movimento.
Algo de sol (1996)
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[4]
Metade
Eles escrevem (elas
também) e têm metade
da minha idade escrevem
não sei se muito bem
tampouco escrevo bem
(eu sei) mas tenho o dobro
da idade que eles têm
(e elas também) mas tenho
metade ou talvez menos
(principalmente caso
não largue o tabagismo)
de sua expectativa
de vida e escrevo menos
por dia mês ou ano
também talvez metade
ou menos talvez tenha
escrito (e isso no dobro
do tempo) muito menos
do que a metade seja
(nem sei se muito bem)
do que eles escreveram
ou elas escreveram
(e nada me garante
que o tenha escrito bem).
Parte alguma (2005)
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[5]
Código morse
Se indagas como assim
sei que, no fundo, atrai-te,
mais que o de Shere Hite,
o Relatório Kinsey
e, quanto ao nosso encaixe
(que anseio), não me dói de-
clarar que, a Sigmund Freud,
prefiro Wilhelm Reich –
só para que me entendas
melhor, deixa-me, dentro
das zonas mais pudendas,
expor meu argumento
– com dedos – à mucosa
do teu botão de rosa.
Parte alguma (2005)
Nelson Ronny Ascher nasceu em São Paulo (SP) em 1º de janeiro de 1958. Graduou-se em Administração na Fundação Getúlio Vargas e pós-graduou-se em Comunicação e Semiótica na PUC-SP. Traduz poesia de diversas línguas e, desde 1970, dedica-se à crítica literária. Foi editor da Revista da USP e do Folhetim, suplemento cultural da Folha de S. Paulo já extinto. Como poeta, publicou os seguintes livros: Ponta da língua (1983), O sonho da razão (1993), Algo de sol (1996) e Parte alguma (2005). Como pesquisador, organizou, junto com Rui Moreira Leite, a antologia Cocktails, poemas de Luis Aranha (1984). Em seguida, agora como tradutor, publicou os seguintes títulos: Vida sem fim, poemas de Laurence Ferlinghetti, com Paulo Leminski e outros (1984); Canção antes da ceifa, versão para o português da poesia húngara moderna, com prefácio de Paulo Rónai (1990); Quase uma elegia, poemas de Joseph Brodsky, com Bóris Schnaiderman (1995); e Desencontrários/ Unencontraries: seis poetas brasileiros, em edição bilíngue, com Haroldo de Campos (1995), e O lado obscuro, uma coletânea de poesia hispano-americana (1996). Por fim, como ensaísta, lançou Pomos da discórdia (1996). Sobre o livro O sonho da razão, o grande crítico Antonio Candido fez o seguinte comentário: “Eu diria que todos os poemas de O sonho da razão são bons e que o título é perfeito como reflexo da obra. Diria mais que não é frequente encontrar um livro tão bem realizado, dando a impressão de que o autor não escorrega nem erra a mão. […] O resultado é sempre uma surpresa metodicamente construída”.