O escritor Bariani Ortencio morreu centenário, no dia 15 de dezembro de 2023. Na ocasião, muita gente escreveu sobre seu trabalho incansável na pesquisa, divulgação e produção de cultura em Goiás. Era versado em diversas áreas do saber, da culinária à literatura, da música ao folclore, passando por questões do meio ambiente e da sabedoria lírico-etílica.
Eu não tinha intimidade com ele. Mas o conhecia de longe, desde minha adolescência no começo dos anos 1990. Via-o na televisão e ocasionalmente lia suas crônicas em O Popular. Quando comecei a me interessar pela literatura, cheguei a ler um livro infanto-juvenil seu, intitulado O enigma do saco azul, e mais tarde os clássicos de contos, como Vão dos angicos.
Ou seja, ele ocupava espaço na minha memória. Até que um dia decidi visitá-lo para uma entrevista. Liguei pra ele: “Bom dia, seu Bariani! Meu nome é Gilberto, sou jornalista, e gostaria de entrevistá-lo sobre pontos icônicos da história goianiense”, eu disse.
Era uma pauta cultural, autônoma, que nunca finalizei, mas que ainda está no horizonte do provável. “Pois não. Estou sempre aqui. Quando você vem?”, respondeu o escritor.
A conversa não foi tão rápida assim. Primeiro ele pediu para eu repetir: “Quem?”, “Gilberto”. “Quer falar sobre o quê, Gilberto? Ah, bom. Quando você pode vir?”. “Amanhã à tarde, às 15 horas [de 9 de maio de 2017]. Pode ser? Qual é seu endereço?”, perguntei de praxe. “Você não sabe onde moro?”, admirou-se.
Todo mundo sabe onde Bariani Ortencio morava. Na entrada da casa, há várias placas indicando de quem é aquela propriedade. Fica na Rua 82, aquele anel externo da Praça Cívica, quase em frente aos pontos de ônibus do anel interno. É um sobrado branco, grande, de arquitetura moderna, edícula retangular. Do lado direito, fica a garagem, e uma escada que dá para a parte nobre da residência.
Do lado da garagem, uma porta dá acesso direto ao quintal, à piscina e a um salão de visitas, bem como aos espaços destinados à biblioteca do escritor e a uma espécie de relicário, ou memorial, com o acervo de fotos, diplomas, certificados de homenagens e prêmios, objetos de arte, troféus.
O lar de Bariani Ortencio era “uma casa de festa e cultura, o ponto de encontro de tantos intelectuais, um ponto de partida das grandes ideias, dos grandes atos ligados à cultura da gente goiana”, como disse Álvaro Catelan, no livro A cultura plural de Bariani Ortencio – vida e obra, organizado por Elizabeth Caldeira Brito e Nelson Santos.
Todos sabem onde fica a icônica residência, mas eu precisava me certificar. Vai que aquilo tivesse virado um museu e eu não sabia! Na Alameda dos Buritis, há um prédio com seu nome. Seria natural que ele morasse lá. E aí, fiquei sabendo que sua casa já sediava o Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortencio.
Tesouro simbólico
Um dos últimos cavaleiros da cultura goiana da primeira geração, Bariani foi muito homenageado em vida. Foi lembrado e festejado de várias maneiras, e com justiça. Conquistou esse merecimento.
Ele é de fato uma riqueza nacional: empresário (fundador do Bazar Paulistinha), pesquisador da cultura e do folclore do Cerrado, divulgador da beleza do Araguaia, “o mar dos goianos”, na sua música e em suas crônicas, que estão replenas de receitas incríveis, principalmente as do Rio Araguaia. Em uma delas, por exemplo, ele ensina como preparar uma matrinchã:
Desfata o peixe, “envolto em papel aluminizado ou em folha de coqueiro e colocado dentro da cava na areia, onde foi feito uma pequena fogueira e retirada as brasas. Colocado o peixe, voltar as brasas e a areia quente por cima. Passada uma boa hora estará assado-cozido. Depois é só retirar a crosta (escama com o couro), colocar no prato, ao lado de um arrozinho soltinho e regado com um molho vinagrê: vinagre ou limão, sal, cebola-de-cabeça, picadinha, cheiro-verde e um saborzinho de pimenta-bode. Não pode faltar uma cachacinha e, se for a Vale do Cedro, melhor ainda.”
Bariani também era compositor, contista premiado, dicionarista, autor de romances policiais e de ficção regional. Sua memória é um tesouro simbólico. Jogava em muitas posições. Inclusive foi goleiro de verdade no Atlético Goianiense, time pelo qual era apaixonado, criado um ano antes de ele chegar ao bairro de Campinas.
Memória
Em 2016, tinha sido homenageado pelo então governador Marconi Perillo. No mural, estavam as fotos desse encontro. Mas havia fotos de tudo quanto era tipo, e em vários momentos de sua vida. Numa delas, em preto e branco, ele aparece ainda miúdo ao lado das duas irmãs.
Em outra foto, uma obra de Bariani Ortencio aparece nas mãos do papa Francisco. Trata-se do seu livro mais editado, Cozinha Goiana – edição especial, comentada e ilustrada.
Nascido em 1923 no interior de São Paulo, o menino Waldomiro Bariani Ortencio veio para Goiânia aos 15 anos. Chegou no último dia de 1938, num sábado à noite, como ele gostava de lembrar, e viu a nova capital crescer.
Em 1968, foi homenageado com o título de cidadão goianiense. Em 2013, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de Goiás das mãos do reitor Edward Madureira. A foto da cerimônia está lá, estampada na parede do relicário também.
O escritor sempre esteve presente na mídia. Nas décadas de 1980 e 90, aparecia na TV Anhanguera no programa Frutos da Terra, de Hamilton Carneiro, gravado numa área coberta ao lado da piscina na casa do próprio Bariani. Assisti muitas vezes ao quadro Dois dedos de prosa, que Bariani fazia com Carmo Bernardes (1915-1996). Eu achava incríveis aquelas conversas.
A espontaneidade com que o autor me recebeu em sua casa, sem ter ideia de quem eu era, me fez dobrar o respeito por ele. Embora tenha me apresentado como jornalista, “já trabalhei em O Popular”, eu disse (referência para o imaginário goiano), nada garantia minhas intenções. Acreditou em mim, simplesmente.
Por causa da idade, ele falava devagar. Escutava devagar. Andava devagar. Pensava devagar. Mas a memória estava intacta, à exceção de datas. Se contava uma história, presa no tempo, estava tudo bem, porque neste caso a data é de domínio público.
Mas histórias guardadas apenas em sua memória, lembranças que só ele tinha, pareciam ter se despregado do calendário mental. E, aí, o espaço temporal ficava mais amplo. O conteúdo, no entanto, permanecia límpido e amplo como um céu azul, em que tudo que passa pode-se ver com clareza.
Notei também uma súbita ranzinzice. Se ele não te entendesse, julgava que você não o entendera, e dava a mesma resposta de antes com certa irritação. Mas até nisso era um homem que sabia ouvir, porque, se você insistisse na pergunta, dando exemplos daquilo que você queria saber, ele voltava atrás e dava a resposta requerida.
Acervo
Tinha muito respeito à memória. Olhava para o passado com diplomacia e elegância. A biblioteca de Bariani é um grande achado para pesquisadores culturais. “Tenho todos os livros da literatura goiana”, disse ele, orgulhoso de seu acervo.
É importante ler nas entrelinhas, neste caso. Sua biblioteca tem toda a literatura clássica goiana. Mas não vi ali Wesley Peres, Mazinho Souza, nem André de Leones. Não vi. Mas os clássicos estavam todos lá.
Num rápido passeio ciceroneado por ele, vi capas de Antes das Águas, de Anatole Ramos; Léguas sem fim, de Willy Aureli; A existência de Marina, de Ursulino Leão; Panfletárias, de Americano do Brasil; Poesia quase completa, de Léo Lynce; Goiás libertado, de Guimarães Lima; Geórgicas, estórias da terra, de William Agel de Melo; Do amor e da ausência, de Tagore Biram (pseudônimo de Ubiratan Moreira).
Muitos desses livros são raríssimos, nem em sebos há. Panfletárias, por exemplo, não aparece nem na bibliografia de Americano do Brasil, catalogada na internet.
Eternidade
Bariani publicou mais de 50 livros, entre eles os clássicos O que foi pelo sertão, que ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras; Sertão – o rio e a terra; Sertão sem fim; Vão dos angicos; Meu tio avô e o diabo.
Dentre tantos outros títulos, alguns foram publicados depois de minha visita, e um, especialmente, estava sendo lançado naquela ocasião, Minhas reminiscências – memorial desde a fundação de Goiânia.
Segundo Gilberto Mendonça Teles, a contística de Bariani avoluma e enriquece consideravelmente o “ciclo do sertão”, levando ao extremo o “pitoresco e a cor local”, incluindo na “cor local” não só a paisagem, os hábitos, a linguagem, mas também o próprio homem.
Para o escritor Ursulino Leão, a literatura do amigo paulistinha “possui fôlego da eternidade”. É por meio disso que ele permanece existindo, por meio do fruto do amor que ele tinha pela cultura e pelas artes.