Professora de Filosofia da Educação na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), a pesquisadora Rita de Cássia Machado é idealizadora e coordenadora do projeto As Pensadoras. Criada em 2020, a iniciativa nasceu inicialmente como uma escola virtual, oferecendo um curso on-line de introdução ao feminismo durante a pandemia de Covid-19, e depois foi se ampliando para integrar também uma editora e uma livraria e promover várias outras atividades, como workshops, seminários, debates etc. Hoje, As Pensadoras (https://aspensadoras.com.br/) contam com várias associadas em todo o Brasil e têm atuado fortemente para proporcionar uma formação humanista feminista, oferecendo cursos de curta, média e longa duração. O projeto também lançou a coleção As Pensadoras, um contraponto à conhecida coleção Os Pensadores que, ao longo de várias edições, pretendeu traçar a história do pensamento ocidental, sem, no entanto, destacar a contribuição das mulheres. Já em seu terceiro volume, a coleção traz ensaios assinados por pesquisadoras a respeito de nomes como Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Lélia Gonzalez, Angela Davis, Maria Lugones, Silvia Federici, Elza Freire, entre outras.
Formada em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado também em Educação pela Unisinos, Rita de Cássia Machado é membro da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas e subcoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação na UEA, em Tefé-AM. Como pesquisadora, tem várias publicações nas áreas de Estudos Feministas, Mulheres e Educação e Filosofia Feminista. Leia a seguir a entrevista que ela concedeu a Ermira Cultura, em que falou do projeto As Pensadoras, sobre o seu trabalho com mulheres de comunidades indígenas do Amazonas e dos desafios do movimento feminista hoje no Brasil.
Como nasceu o projeto As Pensadoras?
O projeto As Pensadoras inicialmente nasceu de uma ideia, depois de uma inquietação e ele foi se consolidando a partir de uma necessidade. A questão partiu do contexto da obra de pensadoras, que estávamos trabalhando bastante na época, e que também envolvia a criação de um GT de Gênero e Filosofia na Anpof [Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia]. Não queríamos abordar a presença das mulheres no pensamento, na história da filosofia, o gênero como uma categoria filosófica, de mulheres. Então, por que não uma filosofia das mulheres? Todos esses contextos potencializaram muito o nascimento das Pensadoras.
Logo depois, também veio a pandemia, quando de fato se concretizou o nascimento do projeto. Eu sempre tive vontade de ter uma escola de formação e de pensamento, mas nunca pensei que poderia ser voltada para a questão da presença das mulheres no pensamento. Inicialmente, foi um curso [on-line] de filosofia feminista, foram cinco aulas com cinco colegas, que inclusive, naquele período, assim como eu, compunham o núcleo estruturante do GT. E esse primeiro curso foi executado e certificado pela Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. E aí surgiram 3 mil pessoas interessadas nessa capacitação e, desde então, começamos a fazer os cursos das Pensadoras. Durante a primeira formação nós trazíamos muitas mulheres para discutir as questões colocadas. E então as pessoas diziam: “Nós precisamos estudar essas mulheres, nós precisamos estudar Mary Wollstonecraft, Lélia González”. E aí veio a ideia, nós precisamos estudar as mulheres, né?
No primeiro momento, pensamos em algo como “As Mulheres na Filosofia”, mas ainda não era exatamente o que queríamos. Depois pensamos nas “Filósofas” e também não se encaixava, porque não se tratava só delas. Até que um dia, olhando para a coleção Os Pensadores, da Folha de S. Paulo, veio a ideia: “As Pensadoras”.
Porque à medida que vamos estudando essas mulheres, e eu já estudei algumas bastante, vamos percebendo que elas são pensadoras de um contexto muito geral das suas vidas. Não estão ligadas só ao pensamento, ao raciocínio, não, mas estão produzindo. Mulheres da arte, jornalistas, pianistas, donas de casa, mães, enfim. Então, as pensadoras vêm dessa ideia de que o pensamento das mulheres é um pensamento interdisciplinar e que ele perpassa todas as dimensões da vida das mulheres.
Na coordenação das Pensadoras, você e sua equipe têm realizado diversas atividades, como cursos, encontros, seminários. Como tem sido essa experiência ao longo desses anos? Quais são os projetos em andamento e o que vocês planejam para o futuro?
Essas atividades que promovemos são realizadas em âmbito de comunidade. Porque fomos nos dando conta de uma premissa importante, a de que o feminismo não é solidão. Percebemos a importância de uma comunidade que possa ela mesma realizar essas atividades, cursos, administrar aulas, seminários, em que nós podemos e queremos aprender umas com as outras. Em alguns momentos, eu sou professora; em outros momentos, sou aluna; em em outros, coordeno o eixo; em outros, monitoro a sala, assim como acontece com todas também – alunas, professoras. Vamos alternando esses lugares dentro da comunidade. Tem sido um espaço de aprendizado e prática feminista e de troca de conhecimento.
Eu acho isso tão genuíno, porque uma mulher que estudou mais e tem uma experiência maior com algum tipo de pensamento e de feminismo vai ajudando e aprendendo com aquela de outra linha de estudos. E aí nesse processo nós vamos construindo o que chamamos de comunidade de As Pensadoras.
São projetos que de fato colocam o feminismo como uma grande questão para o pensamento. E aí o que pensamos para o futuro? Que essa escola e esse projeto da comunidade cresçam, que possamos ter mais mulheres associadas e participando, estudando junto, ensinando, levando o projeto para outros espaços e outros lugares, numa multiplicação da ideia. E também chegar aos 10 volumes da coleção As Pensadoras, que é um projeto também de futuro que a gente quer colocar na rua. Esses são os nossos desejos.
“Percebemos a importância de uma comunidade que possa ela mesma realizar essas atividades, cursos, administrar aulas, seminários, em que nós podemos e queremos aprender uma com as outras”
Como você avalia a inserção das mulheres no campo da pesquisa acadêmica no Brasil, em especial na filosofia, que é a área de sua formação?
No que diz respeito ao campo da pesquisa acadêmica, eu considero que ainda há uma enorme desigualdade, um enorme abismo entre mulheres e homens. E aqui eu não vou fazer nenhum recorte e nenhuma interseccionalidade, vou falar mesmo das pesquisas mais gerais que saem. Principalmente no que diz respeito ao número de bolsas para projetos de pesquisas financiados, e especialmente a visibilidade dessas pesquisas.
Contrariamente a isso, nós temos mais mulheres entrando nos programas de pós-graduação, mais políticas afirmativas adentrando o campo da pós-graduação, uma exigência hoje via associação GT Filosofia e Gênero, de equidade de gênero, temos protocolos sobre assédios, enfim.
Mas, mesmo assim, ainda há um número muito inferior da participação das mulheres nesses campos. Claro, a gente tem várias premissas que poderiam nos ajudar a entender isso, mas eu considero que a maior delas ainda é essa ideia de que as mulheres não são capazes de fazer filosofia ou não têm o cérebro desenvolvido para tal. O que a gente chama de uma grande misoginia no campo da filosofia.
E, por incrível que pareça, o que eu percebo é que, mesmo nós tendo mulheres ainda na filosofia, há o entendimento de que a filosofia só se faz se a gente estudar o pensamento dos homens. Eu vejo muito poucas mulheres fazendo filosofia feminista, estudando mulheres, pensando e trazendo à luz o pensamento das mulheres.
Então é um caminho ainda muito longo a ser trilhado, a gente precisa ainda de muitos debates, ainda precisamos de muitas políticas no campo da pesquisa para que a gente consiga, de fato, ter uma inserção paritária das mulheres na ciência e também no campo filosófico. Também há uma grande discussão se filosofia é ou não é ciência, e nessa nós não vamos entrar.
Como professora da Universidade Estadual do Amazonas, no câmpus da cidade de Tefé, você tem realizado um trabalho já há alguns anos com mulheres das comunidades indígenas. Você poderia falar um pouco dessa atuação e da sua convivência com essas pessoas?
Há muitos anos, estudo e pesquiso e sou feminista. Sou uma filósofa feminista e trabalho com educação das mulheres em comunidades indígenas e não indígenas. Indígenas, mais recentemente, por conta da interiorização da pós-graduação e daí as mulheres indígenas vêm querendo estudar seus próprios povos e suas culturas, e não indígenas a partir de comunidades ribeirinhas.
O que eu tenho aprendido muito nesses 12 anos de universidade e de trabalho no interior, atuando com mulheres na formação e na pesquisa, tem a ver com novos valores, com uma nova ética, um novo ethos de viver. E eu tenho aprendido demais, por exemplo, o sentido da comunidade. Foi exatamente aprendendo o sentido da comunidade para esses povos e como essa ideia de viver em comunidade dá certo e que é importante na superação de muitas lógicas capitalistas e individualistas, inclusive do próprio conhecimento, que eu trouxe essa visão para As Pensadoras. A ideia de comunidade das Pensadoras está muito inspirada nessa ideia de comunidade, da forma como eu convivo com as mulheres no interior.
Outros elementos de uma aprender com a outra, a que tem mais idade com a que tem menos, a ideia do cuidado, do espaço seguro, então é uma outra ética, outro ethos. Agora é claro que é difícil isso, porque nós, na comunidade As Pensadoras, não somos todas que têm essa mesma convivência e esses mesmos entendimentos, mas, como é uma comunidade, a gente sempre trabalha essa perspectiva de estar lá para aprender a importância de uma escutar a outra e também aprender principalmente a conviver, porque as mulheres aprendem desde muito cedo a competir e não a conviver com outras mulheres. Então, acho que isso é bem importante destacar, porque tem relação tanto com a minha realização dos projetos com mulheres no Amazonas quanto nas Pensadoras.
“O que eu tenho aprendido muito nesses 12 anos de universidade e de trabalho no interior, atuando com mulheres na formação e na pesquisa, tem a ver com novos valores, com uma nova ética, um novo ethos de viver. E eu tenho aprendido demais, por exemplo, o sentido da comunidade”
Você tem uma longa atuação na área dos estudos feministas no Brasil, que tem ganhado cada vez mais espaço no ambiente acadêmico, mas ao mesmo tempo é alvo de fortes ataques de setores ultraconservadores da sociedade brasileira. O que você identifica como os principais desafios do movimento feminista no Brasil hoje?
Eu acho que o maior desafio hoje do movimento feminista e do movimento progressista como um todo, democrático, é a ultradireita. Sem dúvida nenhuma, a questão da ultradireita está colocada no nosso contexto, está o tempo todo nos ameaçando, não só no Brasil, na América Latina, como no mundo todo.
As crises geradas também por políticas de morte ou necropolíticas, digamos assim, também são ameaças. E aí isso faz com que os movimentos se voltem mesmo para dar conta de questões muito emergentes, como a questão climática, como a violência contra as mulheres, o assédio, o feminicídio, essa estrutura de crueldade, como diz Rita Segato. As mulheres e os movimentos precisam estar muito atentos e preocupados com essas políticas de morte.
Muitas vezes nós não conseguimos lançar um olhar sobre a totalidade, sobre o todo e traçar estratégias de pensamento, de teoria e de prática também. Porque eu sou de uma linha que pensa teoria e prática juntas, não sou de uma linha abstrata, até porque a filosofia das mulheres ou a filosofia feminista não vai por esse caminho metodológico de proposições de saídas.
O curso de Aperfeiçoamento em Feminismos deste ano vem responder a uma série de questões e de desafios colocados aos feminismos. O desafio de entender essa história das mulheres, e como é que essa história vai nos substituindo e formando esses conceitos de mulheres ao longo do tempo. Também abordando o desafio da mudança climática e de como é que as mulheres indígenas e não indígenas podem estar aliadas buscando soluções. Juntamente com esse grande debate sobre as questões da política, a participação das mulheres na política é essencialmente importante para uma sociedade democrática.
Nós não podemos falar de democracia quando só quem ocupa esses espaços são homens, com a sua velha política. Mesmo homens de esquerda também exercem esse tipo de política.
A formação em feminismos que As Pensadoras oferecem este ano é um curso que também vem responder a esses diversos desafios. Como combater a violência contra mulher? E aí tem que estudar mesmo a violência como estrutural, estruturante da sociedade. E não simplesmente dizer que botar o sujeito na cadeia resolve. Como mudar a cultura do estupro? Como mudar a cultura do assédio? Então, isso passa por um processo profundo de reflexão, de debate, de formação e de mudança. E, aí, a gente não tem outro caminho que não seja a educação, e daí a educação feminista e a educação das mulheres. É para isso que a Escola As Pensadoras existe no Brasil e no mundo.