[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Naissance de Vénus
De sa profonde mère, encor froide et fumante,
Voici qu’au seuil battu de tempêtes, la chair
Amerèment vomie au soleil par la mer,
Se délivre des diamants de la tourmente.
Son sourire se forme, et suit sur ses bras blancs
Qu’éplore l’orient d’une épaule meurtrie,
De l’humide Thétis la pure pierrerie,
Et sa tresse se fraye un frisson sur ses flancs.
Le frais gravier, qu’arrose et fuit sa course agile,
Croule, creuse rumeur de soif, et le facile
Sable a bu les baisers de se bonds puérils ;
Mais de mille regards ou perfides ou vagues,
Son oeil mobile mêle aux éclairs de périls
L’eau riante, et la danse infidèle des vagues.
Album de vers anciens – 1890-1900 (1920)
Nascimento de Vênus
Recém-nascida, ainda fria e fumegante
Eis no trovão da tempestade, sua carne
Expelida à luz pelo mar, amargo encarne
Mimo da tormenta, cintilante diamante.
Seu sorriso se forma, e logo os braços brancos
Irisdescente brilho que o ombro morto verte,
Joia que a aquosa Tétis em vida converte
Ao roçar, sua trança arrepia os flancos.
Irriga o cascalho em sua corrida ágil,
Eis vazio, voraz rumor de sede, e a fácil
Areia bebe o beijo do salto pueril;
Mais de mil visões, as mais sórdidas ou vagas
O olho capta no sinal do perigo vil
A água saliente e a infiel dança das vagas.
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[2]
Le bois amical
Nous avons pensé des choses pures
Cótê à cóté, le long des chemins,
Nous nous sommes tenus par les mains
Sans dire… parmi les fleurs obscures ;
Nous marchions comme des fiancés
Seuls, dans la nuit verte des prairies ;
Nous partagions ce fruit de féeries
La lune amicale aux insensés
Et puis, nous sommes morts sur la mousse,
Très loin, tou seuls parmi l’ombre douce
De ce bois intime et murmurant ;
Et là-haut, dans la lumière immense,
Nous nous sommes trouvés en pleurant
Ô mon cher compagnon de silence !
Album de vers anciens –1890-1900 (1920)
O bosque amistoso
Contemplamos coisas mais puras
Lado a lado em via de ramos
Damos as mãos e as seguramos
Mudos… entre flores obscuras;
Vamos enamorados natos
Na noite verde, campo em luto
A sorver feérico fruto
Lua, amiga dos insensatos.
Depois já sepultos na espuma
Longe, tão sós na doce bruma
Do bosque que murmura cantos,
E no alto, em pleno alumiar
Nos achamos vertendo prantos
Ó díspar silencioso par!
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[3]
Um feu distinct…
Um feu distinct m’habite, et je vois froidement
La violence vie illuminée entière…
Je ne puis plus aimer seulement qu’en dormant
Ses actes gracieux mélangés de lumière.
Mes jours viennent la nuit me rendre des regards,
Après le premier temps de sommeil malheureux ;
Quand le malheur lui-même est dans le noir épars
Ils reviennent me vivre et me donner des yeux.
Que si leur joie éclate, un écho qui m’éveille
N’a rejeté qu’un mort sur ma rive de chair,
Et mon rire étranger suspend à mon oreille,
Comme à la vide conque un murmure de mer,
La doute – sur le bor d’une extrême merveille,
Si je suis, si je fus, si je dors ou je veille ?
Album des vers anciens – 1890-1900 (1920)
Um fogo distinto…
Um fogo frio me dá calafrio
A vida cruel fica iluminada…
Só quando adormeço tem o amor brio
Sua carícia fica perfumada.
Passa o dia e a noite cuida de mim
Após a fase infeliz do verão
Dilui a dor na escuridão enfim
Ela me restaura a vida e a visão.
O seu eco de alegria me acorda
Rejeitei um só morto para amar
Meu riso estranho a orelha aborda,
Como à oca concha murmura o mar
A dúvida – milagre nunca visto,
Se sou, se fui, se durmo ou se me avisto?
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[4]
Les grenades
Dures grenades entr’ouvertes
Cédant à l’excès de vos grains,
Je crois voir des fronts souverains
Éclatés de leurs découvertes !
Si les soleils par vous subis,
Ô grenades entre-bâillées,
Vous ont fait d’orgueil travaillées
Craquer les cloisons de rubis,
Et que l’or sec de l’écorce
À la demande d’une force
Crève en gemmes rouges de jus,
Cette lumineuse rupture
Fait rêver une âme que j’eus
De sa secrète architecture.
Charmes (1922)
Romãs
Rígidas romãs entreabertas
Cedem ante o excesso de grão
Lembram cérebros em ação
Pipocam suas descobertas!
Semiabertas, visam embates
Se um implacável sol as banha,
Fazem jus à sua façanha
Rompem os muros escalartes,
Se na seca casca dourada
Uma força é aplicada
Jorram as rubras gemas sangue,
Nesta luminosa ruptura
Vislumbra a minha alma langue
Sua íntima arquitetura.
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[5]
Le vin perdu
J’ai, quelque jour, dans l’Océan,
(Mais je ne sais plus sous quels cieux),
Jeté , comme ofrande au néant,
Tou un peu de vin précieux…
Qui voulut ta perte, ô liqueur ?
J’obéis peut-être au devin ?
Peut-être au souci de mon coeur,
Songeant au sang, versant le vin ?
Sa transparence accoutumée
Après une rose fumée
Reprit aussi pure la mer…
Perdu ce vin, ivres les ondes !…
J’ai vu bondir dans l’air amer
Les figures les plus profondes…
Charmes (1922)
O vinho perdido
Lancei no Oceano impoluto
(o céu não me vem à lembrança)
Vinho de toda confiança
Com algo de vinho absoluto…
Ó licor, quem quis esse fim?
Segui o que me disse o adivinho?
Ou só o coração enfim,
Pensando em sangue e em verter vinho?
Quando esvai a rósea aparência
A sua usual transparência
Torna bem mais límpido o mar…
Ó vinho perdido, ébria onda!…
Formas que ninguém jamais sonda
Vi jogadas no acerbo ar…
Ambroise Paul Toussaint Jules Valéry nasceu em 30 de outubro de 1871 em Sète, cidade da costa mediterrânea francesa, e morreu no dia 20 de julho de 1945, em Paris. Na cidade de Montpellier, além do ensino secundário, estudou Direito. Nesse período, fez leituras decisivas que orientaram o seu interesse pela escola simbolista. Tornou-se próximo de André Gide e José-Maria de Heredia, sendo depois introduzido no seleto grupo de Mallarmé, a quem devotará amizade, admiração e será o seu mentor intelectual. Em 1894, mudou-se para Paris, onde tornou-se redator do Ministério da Guerra. Em sua vida pública e como intelectual, ocupou cargos importantes e foi distinguido com várias honrarias. Após viver crise existencial, permanece vinte anos sem se dedicar à poesia, só retomando-a em 1917 com o épico A jovem parca, escrito durante quatro anos. Em 1925, torna-se membro da Academia Francesa. No período de 1937 a 1945, foi professor no Collège de France, ocupando-se da cátedra de poesia, criada em sua homenagem. Foi conferencista, filósofo construtivista e ensaísta. Nesse último gênero, dedicou-se à arte poética. Entre suas principais obras, destacam-se os seguintes títulos: Introdução ao método de Leonardo da Vinci (1895), A noite com o senhor Teste (1896), A jovem parca (1917), Álbum de versos antigos (1920), Charmes (1922), Degas, dança, desenho (1938). Em 2019, a Ateliê Editorial e a Editora UFMG publicaram, em edição bilíngue, Paul Valéry: O azul e o mar, uma coletânea de poemas com tradução, seleção e apresentação de Eduardo Campos Valadares, professor da UFMG e autor de Discreto afeto (Iluminuras, 2016). Dessa coletânea foram escolhidos os sonetos que estampam a coluna Florações.