[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Inesperado da carpintaria
objetos banais
descartáveis objetos se tornam
acúmulos cotidianos
o dia a dia visto pela obsessão do avesso
metal plástico madeira
resíduos em aparições
registros de sonhos
objetos saindo de suas aparentes banalidades
compondo na partilha outras formas
variações seriais
a série verdadeira é labiríntica
Bispo das coleções
na busca pelo ponto aurático
o solo comum
proteção e piedade
são nos fios do manto
vazão das formas
metonímias da sobrevivência
(Série Recortes)
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[2]
Mamífero humano
“os homens são tão necessariamente loucos que seria enlouquecer por uma outra forma de loucura não ser louco”
Pascal
Por que ainda observo as formas ao redor
Por que ainda me sinto deslocado
Por que ainda carrego conflitos que não sei
Por que ainda me sinto nu diante do espelho
Por que ainda pensamentos me atravessam
Por que vivo sob rajadas de mal-entendidos
Por que ainda me sinto consumido pelos outros
Por que me sinto num estado aturdido
Por que ainda falo numa língua que não sei?
Sou apenas um mamífero humano
(Série Recortes)
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[3]
Na dicção dos objetos
O uivo do vento na praia lá fora.
Na sala perto do sofá
os rochedos acometidos pelas ondas.
No quarto entra pela abertura
a luz na sua imobilidade.
A cadeira no mesmo lugar
dá costas guarda seu cheiro
e no corredor o ritmo lento
dos passos
É do chão e dos tijolos
que os sons se levantam
enquanto as panelas no armário
imploram pela chama do fogão
Busque entre as coisas que você ama
qual morrerá primeiro.
Não há pressa nessa língua que
confunde a dicção dos objetos
(Série Recortes)
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[4]
Sem saber
no vapor com Bill Viola
Onde quer que esteja
aqui ou em qualquer lugar
disfarço o sentimento de
não ser daqui.
Carne descarnada
capta sons ruídos zunidos
prova o que é reservado
às ondas
converte essa escuta
num registro impossível e a leva
para lá
onde
o som encontra seus silêncios
água e folhas de eucalipto
passados no agora
sopros invisíveis do vapor
(Série Recortes)
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[5]
Meu século, minha besta,
não há fuga
Quem poderá mergulhar em teus olhos?
nem evasão no sonho nem o canto das sereias
para ouvir o sopro de um dia
novo no deserto
Não temer as portas
(o jardim é inacessível)
ouço o sussurro de uma folha caída
na sílaba retorcida o timbre
do breu te vejo.
(Série Recortes)
Patricia Peterle nasceu em São Paulo, cresceu no Rio de Janeiro e mora em Florianópolis. É crítica literária, tradutora e professora de literatura italiana da Universidade Federal de Santa Catarina e poeta. Traduziu vários autores italianos: Giovanni Pascoli, Giorgio Caproni, Enrico Testa, Eugenio De Signoribus, Maria Grazia Calandrone, Andrea Zanzotto, Giorgio Agamben, Roberto Esposito, Franco Rella. Escreveu e organizou diversos ensaios publicados no Brasil e na Itália. Seu livro mais recente é À escuta da poesia, que saiu em 2023 pela Relicário. Outros livros são: No limite da palavra: percursos pela poesia italiana (2015); Vozes: cinco décadas de poesia italiana (2018); A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni (2018). Seus poemas foram publicados nas revistas Acrobatas, Mallamargens, Ruído Manifesto, na galego-portuguesa Palavra Comum e na revista italiana Smerilliana. Publicou em 2024 Perdi meu peão, mas aceito jogar, pela editora Quelônio, e está previsto ainda para este ano Quando a língua bate, pela 7Letras.