Recentemente, realizamos um evento sobre o tema do Republicanismo na UFG. Mesmo com um público reduzido devido aos acontecimentos da época, as atividades foram bastante produtivas (confira em http://seminariorepublicanismo2016.blogspot.com.br/) e ficamos muito satisfeitos com a presença de estudantes, pesquisadores e professores de diversas áreas do conhecimento, e de vários locais do Brasil e também de Portugal.
Na semana do seminário, no início de dezembro de 2016, vários ônibus saíram de Goiânia levando a Brasília pessoas que iriam se unir às manifestações contra as políticas do governo que mudariam a Constituição e confirmariam pelo direito o que já ocorria de fato: o sequestro do direito pela economia e uma total descaracterização da política em seu significado de vida pública. Refletindo sobre aquele momento, percebe-se que o tema da república, assim como muitas questões da política, se apresenta de modo bastante contraditório, pois, quanto mais a sociedade se distancia dele, mais sua presença se faz necessária. O momento era, portanto, mais do que adequado, mas, ao mesmo tempo, bastante desfavorável, devido ao quadro político de avanço do conservadorismo. Esse quadro é muito bem representado pelo slogan “Ordem e Progresso” que o governo Temer tomou como lema, mas que atualmente reflete uma visão abrangente e uma tendência que podem ser vistas em todos os níveis e em todos os poderes do Estado, ou seja, nos governos federal, estadual, municipal; e no Executivo, Legislativo e Judiciário. A reunião das ideias de ordem e progresso, de fato, diz muito sobre a concepção de república em voga.
A ideia de ordem é ambivalente. De um lado, ela serviu para justificar a dominação quando foi empregada pelo catolicismo para legitimar a hierarquia medieval, quando foi retomada pelo absolutismo em defesa do poder incontestável do governante, ou ainda para que o fascismo justificasse a necessidade de obediência absoluta e a violência do Estado. Por outro lado, a noção republicana de império da lei, que vai de Aristóteles a Habermas, supõe uma ordem garantidora da liberdade, e uma liberdade capaz de existir em ordem. Mais ainda, se tomarmos a “ordem” com um significado mais geral, entendida como manifestação das “leis universais”, essa ideia pode ser vislumbrada quando Marx apresenta o comunismo como fruto do progresso histórico. Ou mesmo quando Proudhon diz que a anarquia, no significado mais estrito de ausência de um governo central, é um meio para gerar uma verdadeira ordem social, pois, diz o autor: “Assim como o homem busca justiça na igualdade, a sociedade busca ordem na anarquia”[1].
Quanto à ideia de progresso, parece ser o Iluminismo que a consolida, e com isso cristaliza uma noção de história linear que é ainda predominante. Mas de modo algum estou dizendo que nosso governo é iluminista, pois seria bem difícil encontrar em que ponto ele pretende aprofundar e difundir o conhecimento. Ocorre que – por estranho que essa afirmação possa soar à filosofia metafísica – as ideias não são imóveis e eternas, elas se misturam, e às vezes de modo oportunista. Ou, ainda que seja o discurso a embaralhar as ideias, pouco importa. A questão é que suas manifestações no âmbito da política são frequentemente monstruosas, como no fato de que um dos partidos mais antipopulares do nosso país se chamar “Democratas”.
Em todo caso, a ideia de progresso chega a nossa bandeira e ao governo Temer por meio do positivismo de Auguste Comte – na verdade, no caso de Temer, segundo ele mesmo, foi seu filho de sete anos que o escolheu como lema. Na visão de Comte, o pai da sociologia para alguns, apenas se cada um desempenhasse sua função de modo colaborativo com o organismo social a linha da história poderia continuar avançando. A partir dessa concepção, Comte fala de dois princípios da história, a saber, “ordem e progresso”.
Em resumo, a junção da ideia de ordem com a ideia de progresso poderia significar várias coisas, mas, no discurso político de hoje, inspirado na teoria do século XIX, o lema resulta em quatro enunciados. O primeiro enunciado diz que a ordem é o cumprimento estrito das funções. Como nas formas geométricas da nossa bandeira, qualquer desvio deve ser impedido, pois todo ângulo errado deforma a figura. Socialmente, isso significa que cada um é apenas uma peça do sistema, e que sua qualidade de vida ou o desenvolvimento de seu potencial humano não tem valor para o conjunto. Por isso, as novas leis e políticas públicas dizem basicamente: não pense, não discuta, não reclame, não ocupe, mas trabalhe, produza mais, e produza melhor.
Um segundo enunciado nos diria o seguinte: a história possui um sentido predefinido e a esse sentido se chama “progresso”. No nosso contexto, esse progresso é o caminho para o livre mercado, para a liberdade absoluta de contrato, e para o governo a partir da economia, ou seja, para o crescimento econômico imediato e a qualquer custo, independente até mesmo de conceitos já discutíveis como “desenvolvimento econômico”. Claro que existe ainda aquele discurso de padeiro do Delfim Netto da época da ditadura, de que “primeiro é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, algo que é um ensinamento muito bom sobre bolos, mas uma grande falácia sobre a política. Em todo caso, é pelo foco nesse modelo econômico que políticas que enfraquecem os direitos trabalhistas e a atenção com educação e saúde são chamadas “políticas modernizadoras”, como se fossem um avanço.
O terceiro enunciado define que a ordem é condição do progresso, ou, simplesmente, que só pode haver progresso se for mantida a ordem. Socialmente isso significa um farol verde para a repressão. Geralmente se exige do governo e da polícia a tarefa de reprimir, e por isso há uma indiferença tão grande quando manifestantes e ativistas são perseguidos ou mesmo espancados por policiais, como não é raro aqui em Goiás. Mas, como vimos, se a polícia não age, os guardiões do progresso podem conclamar a que se faça “desocupação com as próprias mãos”, como aconteceu diante das escolas ocupadas em 2016.
O quarto enunciado ao afirmar que “o progresso gera ordem” promove um retorno ao primeiro, e conclui a tautologia do lema que analisamos. “Ordem e progresso” é então uma ideia circular, pois se espera que o avanço produza ordem onde ainda não havia, e que essa ordem impulsione o progresso. Em termos contextualizados: a chamada “modernização” das leis trabalhistas e da Constituição irá retirar toda capacidade de contestação ao ultraliberalismo, seja porque transforma os indivíduos em máquinas incapazes de crítica, seja porque os torna impotentes diante de seus patrões e governantes, fazendo com que os divergentes “mantenham o grito na garganta”.
Nesse contexto, se percebe mais claramente a importância de movimentos sociais e manifestações espontâneas. Muitos desses movimentos atuam contra essa visão totalizadora da história e da política. Por isso também é um tanto desolador ver que outras tantas vezes os grupos que se auto-organizam a partir das pessoas atingidas têm de resistir também a partidos burocratizados ou a outros movimentos centralizados que, mesmo se dizendo contra essas ideias por princípio, consentem com algum tipo de conciliação em nome do que chamam de uma “visão estratégica” ou, pior ainda, de uma “percepção realista” sobre a pouca utilidade da resistência. Nesse último caso, o do pessimismo-realista, o argumento lembra muito aquele que foi usado por Alberico Gentili no século XVI para afirmar que não se deve resistir nem mesmo aos governos tirânicos. O autor afirmava que “suportar a tirania é o menor dos males, o pior é resistir a ela”. Se nosso pessimismo, disfarçado de realismo, chegar ao ponto em que nos posicionamos politicamente – ainda que com um discurso diferente – em uníssono com o pensamento absolutista, então é preciso reavaliar de quais princípios estamos partindo ao tomar nossas posições.
Diante disso, aqueles que criticam os movimentos sociais e suas ações afirmando que estes não percebem a inutilidade da resistência no momento, mas que mesmo assim insistem em se definir como republicanos convictos, talvez devessem considerar melhor a seguinte questão: não seria uma incoerência canalizar o pessimismo desse modo? Ou seja, ao invés de se combater a situação ruim, combate-se aquele que tenta melhorar a situação? Um cartaz em uma manifestação mostrava um bom recado para os que estão nessa depressão parcialmente autoinfligida: “Se você não luta, ao menos respeite os que lutam”. Assim, quando o pessimismo acometer a estes tipos em situações como a que vivemos, minha sugestão a eles não é o sorriso falso, mas esse silêncio respeitoso.
Considero, contudo, que antes de nos tornarmos mudos e deprimidos, avaliemos um pouco mais. Por que esse quadro atual, que alguns setores chamam de “progresso”, é chamado por outros de “retrocesso”? O grande empresário que aplaude e o trabalhador que protesta não vivem uma realidade histórica diferente. Isto exemplifica um conhecimento filosófico básico, que nos diz que a realidade é a mesma em um dado momento, o que muda é sua percepção ou representação. Essa percepção não impede o desenvolvimento da história, ela apenas a julga e com isso define expectativas de linearidade. Independente da multiplicidade de percepções, o desenvolvimento histórico em si é muito mais complexo.
Convém, para deixar mais claro esse ponto, recuperar Walter Benjamin. Escrevendo em 1940 sob o governo nazista, o autor relata que muitos se sentiam surpresos “com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ [fossem] possíveis”. Diante disso, dizia ele, este assombro “não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável”. “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’ ”[2].
Isso significa, dentre outras coisas, que a existência de múltiplos “agoras” em um único momento coloca em cheque o percurso unidirecional da história – tal como é pressuposto pela ideia de progresso. Ou seja, em cada momento, diversos caminhos, diversas histórias são possíveis. É certo, contudo, que o rumo que a história toma não depende da sorte, mas dos conflitos e dos contextos que fazem com que uma das possibilidades predomine, e que um dos agoras prevaleça sobre os demais. Assim, por exemplo, políticas sociais prevalecem em detrimento do liberalismo, ou vice-versa. Mas tudo isso é só uma parte do processo. Para além dos fatores econômicos e sociológicos, a história depende também de fatores imateriais, como os princípios e ideias. A meu ver, o que Benjamin mostra ao criticar esse “espanto” é que esses princípios e ideias não se tornam “passado”. Elas podem ser mais ou menos visíveis, mas são sempre “presentes”, e estão sempre disputando seu lugar com os outros “agoras”. Afinal, as ideias não morrem.
Por não termos uma concepção adequada de história, nos espantamos. O espanto sobre o nazismo em pleno século XX, a surpresa com os discursos de Donald Trump ou com nossos congressistas machistas e homofóbicos repousam sobre a mesma estrutura conceitual. Aquela pergunta: “Como isso é possível em pleno século XXI?” é apenas outra forma de perguntar: “Mas não tínhamos progredido?”. Partindo dessa concepção, portanto, parece preciso concluir que qualquer momento presente não é nada a mais, e nada a menos, do que uma vitória temporária. Para a vida republicana, isso significa que nenhum direito ou conquista social tem garantia absoluta. Creio que isso é bastante óbvio no nosso cenário atual. Pode haver uma constituição, mas, se esta não estiver estruturada em uma vida cívica, ela será como o Colosso com os pés de barro.
A boa notícia é que isso também vale do lado inverso, ou seja, para tudo o que se perde em termos de direitos e garantias sociais. Não foi sem luta que se conquistou os direitos civis e políticos, ou políticas de distribuição de renda – em países onde isso existe, claro. Assim, na atual conjuntura, e para retomar as categorias maquiavelianas que me parecem tão adequadas, são “os grandes” que estão surpresos ao ver a determinação e a resistência do povo. Por pouco que seja, são eles que agora pensam com espanto: “Mas já não tínhamos superado o povo?”.
A política sempre carrega um grau de incerteza, e não há por que considerar que essa incerteza sirva apenas a um lado. Isso é ser verdadeiramente realista, isto é, procurar entender uma realidade independente de frustrações e expectativas. Para continuar observando de modo realista, não creio que, como “intelectuais” – termo que se tornou quase pejorativo –, sejamos capazes de alterar ou reverter esse processo de decadência da vida pública. Isso é algo, aliás, muito mais antigo que o cenário aqui mencionado. Somos capazes disso, mas como cidadãos. Ainda assim, em nossa persona de intelectuais, somos capazes de impulsionar mudanças. Tal como uma centelha, uma faísca que está antes do fogo, não podemos criar a fogueira no momento que queremos, e nem a controlamos depois de acesa. Mas assim como o fogo não nasce sem essa centelha, ações não nascem sem princípios e ideias. Portanto, sem o trabalho de pensar, analisar, medir, criticar, seríamos sempre a república de um “único agora” e viveríamos eternamente sob a lei de Trasímaco, que diz que a justiça é o que agrada ao mais forte.
*Este texto foi apresentado na abertura do Seminário Republicanismo: Princípios e Atualidade, em 29/11/16.
[1] O Que é a Propriedade?
[2] Benjamin, Walter . Sobre o conceito da história. In: Obras Escolhidas. Vol. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. VIII).