Em um trecho de Um Estudo em Vermelho, o primeiro romance de Sir Arthur Conan Doyle em que aparece a célebre figura de Sherlock Holmes, o Dr. Watson, maravilhado com a espantosa capacidade analítica de Holmes, compara-o a Auguste Dupin, o detetive criado por Edgar Allan Poe. O pobre Watson acredita sinceramente que está fazendo um elogio ao seu altivo companheiro, mas Holmes lhe responde de forma ríspida.
“Dupin era um sujeito muito inferior. Aquele seu truque de interromper o pensamento dos amigos, com um comentário pertinente depois de um quarto de hora de silêncio, é realmente muito espalhafatoso e superficial. Ele tinha um certo gênio analítico, sem dúvida. Mas não era de modo algum o fenômeno que Poe aparentemente imaginava”, afirma desdenhosamente o investigador londrino.
Os leitores das aventuras de Holmes sabem muito bem que a modéstia não figura entre as virtudes do mais famoso detetive da literatura policial. Portanto, não é surpreendente que Conan Doyle tenha colocado na boca do investigador um comentário tão depreciativo a respeito de outro detetive da ficção, ainda que tal atitude corresponda a cuspir no prato em que comeu. Pois a verdade é que Sherlock Holmes e toda a galeria de detetives pertencentes ao universo dos romances policiais são variações de Dupin, o personagem concebido pelo gênio de Poe.
É praticamente um consenso entre a crítica que o escritor norte-americano foi o criador da literatura policial. Sabe-se que histórias de crime e perseguição datam da mais remota antiguidade – no primeiro volume da coleção de contos Mar de Histórias (organizada por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai), há uma narrativa de crime e mistério datada do Antigo Egito – e estão presentes nas Mil e Uma Noites, na Bíblia e na obra de autores como o francês Balzac e o inglês Godwin. Mas foi Poe quem lançou as bases para o gênero tal como o conhecemos, estabelecendo regras e princípios “que ainda vigoram e que poucas inovações receberam”, como salienta o crítico Oscar Mendes.
A atual milionária indústria dos romances policiais é filha de três contos de Poe publicados na imprensa americana entre os anos de 1841 e 1844. São eles: Os Crimes da Rua Morgue, O Mistério de Maria Roget e A Carta Furtada. Nos três, aparece a figura do francês Auguste Dupin, personagem inspirado no Zadig de Voltaire que detém um saber imenso e se utiliza da teoria das probabilidades, criadas por Laplace, e da análise matemática – além de uma invejável capacidade de observação – para desvendar crimes aparentemente insolúveis.
Dupin não é policial nem detetive particular (aliás, essa profissão nem era comum à época). É um diletante, um homem preocupado apenas com suas investigações filosóficas e científicas, que por acaso acaba auxiliando a polícia. Tem como interlocutor o narrador das histórias, um sujeito limitado intelectualmente e que serve de escada para os brilhantes raciocínios de Dupin (o Dr. Watson, de Conan Doyle, é visivelmente inspirado nessa figura).
Esse homem culto e refinado devota um profundo desprezo aos métodos tradicionais da polícia, os quais julga antiquados e ineficientes. Todas essas características foram copiadas em menor ou maior grau pelos seguidores de Poe.
Desde o investigador Lecoq, criado pelo francês Émile Gaboriau, o discípulo mais imediato do autor norte-americano, passando pelo Sherlock Holmes de Conan Doyle e o Hercule Poirot de Agatha Christie, até o Sam Spade de Dashiell Hammett e o Philipe Marlowe de Raymond Chandler, o perfil do detetive particular é o de um homem independente, dotado de uma inteligência superior. E que trabalha conforme as suas próprias regras, tal como Dupin.
Além da figura de Auguste Dupin, outra inovação de Poe, copiada amplamente depois, foi com relação à própria narrativa. “O golpe de gênio de Poe, que funda o gênero, foi ter sentido que o raciocínio por si só, ou seja, a sucessão de deduções e induções, tinha um interesse dramático e poderia ser transformada na essência da história”, afirma o crítico Jean-Claude Vareille, citado por Yves Reuter no livro Le Roman Policier.
De fato, nos três contos protagonizados por Dupin há uma inversão na sucessão dos acontecimentos, na qual o crime é apresentado como coisa consumada logo no início. O que prende a atenção do leitor até o final é o pormenorizado raciocínio lógico que o personagem empreende para solucionar o mistério. O mesmo método foi empregado por Poe em dois outros contos classificados como “policiais” pela crítica: O Escaravelho de Ouro e Tu és o Homem.
Os comentadores de Poe não se limitam a atribuir ao autor a paternidade do gênero policial, mas também a de algumas de suas subdivisões. Os Crimes da Rua Morgue seria, assim, o primeiro exemplo de romance policial de observação. Nesse conto, Dupin desvenda o assassinato brutal de duas mulheres apenas estudando cuidadosamente o local em que ocorreu o crime.
O Mistério de Maria Roget, inspirado num fato real, o desaparecimento seguido de morte de um jovem em Nova York, é o precursor do romance policial psicológico. Nele, a solução do enigma ocorre por meio da análise do comportamento da vítima e das pessoas suspeitas do crime. Esse conto também dá origem a outro subgênero – o do armchair detective (literalmente, detetive de poltrona), em que o detetive busca esclarecer o mistério a distância, sem visitar a cena do crime. Um exemplo de armchair detective que faria enorme sucesso depois é Nero Wolf, o brilhante detetive obeso que raramente sai do seu apartamento de Nova York, protagonista das divertidas histórias de Rex Stout.
Por fim, A Carta Furtada – conto em que Dupin, valendo-se apenas da lógica, recupera um importante documento surrupiado por um político corrupto – lança os fundamentos do chamado romance policial científico.
PS: A propósito do comentário desdenhoso de Sherlock Holmes sobre Auguste Dupin mencionado no início deste texto, o orgulhoso detetive da Baker Street também teve seu dia de caça. Em uma de suas aventuras, o bandido-cavalheiro Arsene Lupin, criado por Maurice Leblanc, consegue a proeza de enganar o mais famoso investigador do mundo, um certo Herlock Sholmes (a gozação em cima do detetive de Conan Doyle é explícita). É engraçadíssimo o trecho em que Sholmes, desconsolado, percebe que não só deixara Lupin escapar, como também permitira que o intrépido larápio lhe roubasse o relógio, bem embaixo do seu nariz.
Aqui se faz, aqui se paga.