“Embaixo de um denso temporal/ a gente vai encontrar sossego.” O refrão da música de abertura do segundo disco solo de Beto Cupertino, A Gente Vai Encontrar Sossego, soa como um apelo por um pouco de serenidade nestes tempos soturnos. E, de fato, esse parece ser o espírito desse novo trabalho do artista, já disponível nas plataformas digitais. Perto de completar 40 anos (em agosto), o líder da cultuada banda Violins apresenta um conjunto de 11 canções, todas de sua autoria, as quais, apesar de refletirem as angústias deste momento, exalam uma leveza melancólica, de quem pede uma trégua, mesmo debaixo da tormenta.
Bancado com recursos próprios e produzido por Beto Cupertino e Gustavo Marques, o disco contou a participação de Luan Rampazzo e Fred Valle (bateria), Manassés de Aragão (trompete) e Gustavo Vasquez (baixo). Além de interpretar todas as 11 faixas, Beto toca violão e piano. O cantor e compositor Smooth, da banda Branda e ex-Vícios da Era, faz duo com o vocalista da Violins em Calma Cara.
Formado em Filosofia e atualmente cursando Direito, Beto Cupertino é funcionário concursado da Assembleia Legislativa, onde trabalha como pesquisador legislativo. Seu interesse pela música surgiu quando ainda era criança, por influência do pai, que tocava violão e teclado. Beto aprendeu a manejar esses instrumentos sozinho, “fuçando, lendo revistinhas de cifras”. Aos 12 anos, começou a compor. A Violins – que, atualmente, é formada por Beto (voz e guitarra), Fred Valle (bateria), Pedro Saddi (teclado, piano) e Thiago Ricco (baixo e vocais) – surgiu em 2000 e, ao longo de sua trajetória, lançou nove discos, dentre outros projetos digitais. O último trabalho da banda, A Era do Vacilo (Monstro Discos), saiu no ano passado.
Leia a seguir a entrevista que Beto Cupertino concedeu, por e-mail, a ERMIRA sobre seu novo álbum.
Você definiu esse seu segundo disco solo, numa entrevista, como sendo mais existencial e mais “ameno”, mais leve do que o primeiro, Tudo Arbitrário. As letras das músicas também evocam uma certa melancolia. O que o levou a compor o disco? Essa, digamos, “leveza melancólica” reflete esta fase atual de sua vida, você que está prestes a completar 40 anos?
É, acho que existe um sentimento geral de melancolia, dado o atual estado de coisas da vida em comunidade. Está tudo meio ríspido, meio intolerante, impaciente. Soma-se a essa questão a idade, de fazer 40 anos, creio que o resultado é um disco mais nesses moldes, um pouco mais desacelerado, mais leve, buscando alguma situação ideal de restabelecimento.
Essa leveza do disco também aparece na sonoridade, com predominância do violão, no lugar da guitarra, além do uso do piano e do trompete. Como foi o processo de gravação? Você já foi para o estúdio sabendo exatamente o que queria ou o processo foi ocorrendo de forma mais espontânea?
Eu tinha as músicas, feitas com violão ou piano, e fui para o estúdio com a ideia de incrementá-las, mas sem perder essa base mais visceral, mais simples até, do modo como foram feitas. Então as coisas foram feitas em cima dessa ideia de acompanhamento dos outros instrumentos, de tentar se integrar num projeto comum que fosse simples, mas ao mesmo tempo com muito cuidado. Na hora de criar as outras instrumentações, tudo foi feito com total liberdade, com a improvisação muitas vezes, com o aproveitamento da sensibilidade criativa dos outros músicos que colaboraram de forma linda nesse processo.
Você tem formação em filosofia e em várias músicas do álbum aparecem questões de ordem filosófica. Por exemplo, em Baque do Instinto, você fala em viver “sem a graça do divino”, que “não se pode conhecer qualquer verdade” e que seria melhor “seguir o fluxo”. Em Calma Cara, menciona o “super-humano”. Em Talvez Talvez, diz que “assumir o absurdo nos torna menos só”. Parece haver ecos de Nietzsche, Camus, talvez Kierkegaard. Esses são autores com os quais você dialoga ou as referências, se elas existem, são outras? Esse viés existencialista que conferiu ao trabalho também se deve a essa abordagem filosófica de algumas canções?
Sim, esse viés é uma quase natureza minha. Eu entrei para o campo da filosofia quando adolescente pela leitura de autores como Sartre, Camus, pelo existencialismo. Lembro quando estava no primeiro período do curso de filosofia e um professor pediu para os alunos se apresentarem e [revelarem] como descobriram a filosofia. Ao citar os autores que haviam me levado ao curso, fui informado de que tinha entrado pelo “porão” da filosofia. Mas são questões que sempre gostei de ler sobre e pensar sobre, a questão da angústia, da liberdade, da relação do homem com os objetos para extrair algum conhecimento, da reflexão sobre o conceito de verdade, suas múltiplas abordagens etc. O fato de eu ter feito uma faculdade e um mestrado na área de filosofia certamente tem influência nas coisas que faço, ainda que hoje eu esteja mais afastado do trabalho nesse campo.
Você disse que esse disco não traz um conteúdo tão explicitamente político como o seu primeiro trabalho solo, mas em muitas passagens ele claramente faz referências aos tempos atuais, abordando temas como a intolerância religiosa, o fim da democracia, a impossibilidade de diálogo, o “terraplanismo”, para citar alguns. Ao mesmo tempo, você tem se demonstrado muito crítico ao atual momento político do país em suas manifestações públicas nas redes sociais. Como pensa essa relação entre arte e política?
Para o modo como eu escrevo, que absorve muito as coisas do cotidiano, é impossível fazer uma separação completa entre arte e política. A própria arte é um ato político, seja ela engajada ou não. O mundo político está presente em nossa vida, em todas as nossas mais íntimas convicções há alguma coisa de político, no sentido mais lato do termo. Já que a gente falava sobre os existencialistas, eu me oriento politicamente por um princípio muito básico, que é um princípio de humanidade. Sartre escreveu certa vez que o existencialismo é um humanismo, porque o homem está no centro de suas escolhas. Minhas criações, como tudo, estão diretamente relacionadas com minha liberdade, e a liberdade é um conceito filosófico muito político e dependente da política.
Você tem projeto de fazer shows deste disco? Já há alguma apresentação marcada?
Eu tenho a intenção de fazer alguns poucos shows, montados de forma bem simples, como foi feito o disco. O show de lançamento do disco será no dia 1º de junho, num evento no Martim Cererê.
Sobre a Violins, já são quase 20 anos de trajetória, com nove discos lançados. Vocês estão trabalhando em algum novo disco? Quando serão os próximos shows do grupo?
A banda está em banho-maria, fazemos poucos shows. No momento, não temos agenda. Até recebemos propostas de shows, mas temos tentado tocar menos e em situações que realmente valham a pena. A correria da vida de cada um, com seus outros projetos e trabalhos, com família, não permite mais que estejamos tão entregues a um projeto só. Nós lançamos um disco no ano passado, que foi ótimo de fazer, e procuramos manter sempre em funcionamento a banda, embora com menos intensidade. Mas não temos por enquanto um trabalho novo sendo feito.
Como você vê a cena do rock atualmente em Goiânia? E o cenário nacional?
Goiânia sempre teve grandes bandas. Mesmo que algumas tenham ficado mais conhecidas que outras, ainda assim sempre num nível abaixo do popular, sempre se fez muita música boa no rock em Goiânia, desde os anos 80, 90. Com o crescimento dos festivais, cada vez mais bandas novas foram incentivadas e criadas, com muito talento sendo reconhecido. Hoje temos duas grandes bandas com reconhecimento nacional e até internacional, Boogarins e Carne Doce. Ainda que os festivais estejam enfrentando muitos problemas por conta do corte de orçamento do poder público no incentivo desses eventos, continuam acontecendo e equalizando uma certa amostra de coisas novas e bandas de outros lugares. Agora, no que diz respeito ao rock autoral, com casas oferecendo shows semanais, eu tenho a impressão de que isso deu uma diminuída. Temos poucas ou quase nenhuma casa de show atualmente com uma rotina de bandas independentes que levam grandes públicos. É um acontecimento curioso, mas é cíclico também. Daqui a pouco muda. Confesso que tenho pesquisado pouca coisa sobre o cenário nacional. Como todo o país, creio que a falta de investimentos nas áreas de cultura influencia negativamente toda uma cadeia, mas os artistas sempre existirão e sempre estarão nadando contra a corrente, é uma luta que faz parte da essência da arte.
O título do disco, A Gente vai Encontrar Sossego, remete a um verso da primeira faixa, Baque do Instinto: “Embaixo de um denso temporal/ a gente vai encontrar sossego”. Você acredita mesmo que é possível encontrar sossego em algum lugar neste tempo caótico em que vivemos?
O nome do disco contém esse anseio, que, dadas as circunstâncias, é quase poético, é um pedido. É muito difícil viver numa situação de fratura social, de desconfiança generalizada, de acusação mútua eterna. Tenho a impressão de que a sociedade vai se dilacerando assim, vai perdendo as suas conexões, e isso acontece até um certo ponto em que se percebe que não é mais possível continuar no mesmo caminho. É a hora em que é preciso um pacto, uma refundação, um novo contrato social. Esse movimento pendular é muito irritante, porque parece que não se aprende nada com os fatos históricos, com as tragédias já passadas. Mas menos mal que ele exista do que passar a acreditar que as coisas nunca mais serão melhores do que atualmente estão.
Ouça abaixo Baque do Instinto, faixa de abertura de A Gente Vai Encontrar Sossego, de Beto Cupertino