A Rússia de meados do século 19 era uma nação extremamente dividida: de um lado, uma intelectualidade que se pretendia cosmopolita e algumas camadas da sociedade dos seus núcleos urbanos, como os profissionais liberais, funcionários públicos, estudantes, etc., desejavam integrar-se à grande onda de mudanças econômicas e sociais que varria toda a Europa, movida pelo desenvolvimento do capitalismo e pela ascensão da burguesia no campo político; de outro, os grandes proprietários de terra aferravam-se a uma ordem ainda feudal, cuja estrutura repousava sobre os imensos latifúndios e a servidão. Esse cenário em ebulição é o pano de fundo de um dos mais importantes romances da literatura russa, que marcaria época e influenciaria autores como Dostoiévski e Tchecov: o livro Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev.
O que tornou Pais e Filhos, lançado em 1861, de imediato um clássico das letras russas não foi só a extrema maestria com que Turguêniev consegue retratar o momento histórico pelo qual o país atravessava. Mas também a sensibilidade do autor em traduzir o espírito radical de uma nova geração de intelectuais que despontava na Rússia, proveniente das classes médias, que se opunha à geração anterior, cujos integrantes, entre os quais o próprio Turguêniev se incluía, pertenciam à aristocracia e professavam os ideais artísticos e humanistas do romantismo alemão.
Essa nova intelligentsia é caracterizada no romance na figura de Bazárov, um jovem estudioso das ciências naturais que se autointitula “niilista” (é a primeira vez que o termo é usado por um escritor russo). Bazárov anuncia sua recusa a todo e qualquer tipo de autoridade e diz não se apegar a nenhum princípio, seja moral, seja religioso. Desdenha até mesmo da arte, por se proclamar pouco afeito a “abstrações” e partidário de um pragmatismo absoluto e feroz. “Um químico honesto é 20 vezes mais útil do que qualquer poeta”, chega a afirmar a uma certa altura do romance.
A ironia é que esse homem tão avesso a princípios eleva o seu “niilismo” ao status de um princípio que norteia a sua vida. A ele sacrifica tudo, a amizade, a afeição dos pais, o amor por uma jovem viúva. Sua crítica mordaz à “autoridade” também não significa que ele mesmo seja uma pessoa receptiva às ideias alheias – pelo contrário, Bazárov é um tipo autoritário, para quem apenas as suas próprias opiniões contam. E o fato de manifestar seu ódio pela elite russa não quer dizer que se compadeça com a deplorável situação dos milhares de camponeses do país, reduzidos à condição de propriedade dos seus patrões (a fortuna de uma pessoa na Rússia se media não só pela extensão de suas terras, mas também pela quantidade de “almas”, ou seja, trabalhadores rurais, que ela possuía). É quase sempre com desprezo que Bazárov se dirige àqueles a quem julga “inferiores”.
Mas esse personagem singular também é movido por nobres sentimentos. Não nutre nenhuma ambição no sentido de acumular riquezas – aliás, nesse quesito, é um modelo de despreendimento – e sua paixão pela ciência é realmente genuína. Todas essas contradições fazem com que o caráter dessa espécie de anti-herói de Turguêniev ganhe em densidade, expondo as angústias de um indivíduo confrontado com as perplexidades e os dilemas que a vida lhe impõe.
Essa mesma complexidade é vista nos demais personagens do romance. Por exemplo, em Arkádi, o “discípulo” de Bazárov, um jovem idealista e ingênuo que tenta a todo o custo parecer tão implacável quanto o mestre, porém é constantemente traído por sua própria natureza generosa e romântica. Ou em Nikolai Petróvitch, o pai de Arkádi, um fidalgo viúvo que se diz adepto das ideias liberais, chegando mesmo a libertar os servos de sua fazenda, mas hesita em oficializar o seu relacionamento com uma moça bem mais jovem e de origem humilde, com quem tem um filho e vive debaixo do mesmo teto. Ou, ainda, em Pável Petróvitch, irmão de Nikolai, que na juventude fora um conquistador e agora, velho e enfurnado no ambiente rude do campo, insiste em manter as maneiras aristocráticas e o linguajar pomposo com os quais outrora se destacava nos salões chiques de São Petesburgo.
Em um ensaio publicado sobre Pais e Filhos, o escritor Henry James, que foi amigo pessoal de Turguêniev, diz que os tipos que povoam os contos e romances do escritor russo dão “ao leitor a impressão da vida em si mesma”. O próprio autor admitia que era muito mais um criador de personagens do que de tramas. “Nunca tentei criar um personagem sem ter, para me inspirar, não uma ideia, mas uma pessoa viva”, escreveu certa vez. Junte-se a essa habilidade em compor figuras humanas tão reais as convicções artísticas de Turguêniev, que por acreditar que a literatura deveria se constituir em uma esfera autônoma, pautada por critérios próprios, nunca se deixou seduzir nem por um panfletarismo radical nem por um conservantismo reacionário. Por isso, sua obra, em especial este Pais e Filhos, conserva o frescor e a atualidade tão característicos dos clássicos.