Em 2007, quando era editora do caderno Magazine do jornal O Popular, fiz uma entrevista de página inteira com o filósofo Ruy Fausto, um dos mais renomados intelectuais brasileiros, que morreu na última sexta-feira, dia 1º de maio, aos 85 anos, vítima de infarto, em seu apartamento em Paris. Reconhecido no Brasil e no exterior pelo seu trabalho teórico sobre o marxismo, Ruy Fausto tinha acabado de publicar, à época, o livro A Esquerda Difícil, que reunia diversos ensaios nos quais discutia os desafios do pensamento de esquerda naqueles primeiros anos do século XXI, tema que retomaria depois em outras obras, como o mais recente Caminhos da Esquerda (2017). Na entrevista, publicada originalmente em 2 de setembro de 2007 e que ERMIRA apresenta a seguir na íntegra, o professor emérito do Departamento de Filosofia da USP, que na ocasião estaria em Goiânia no dia seguinte para a palestra de abertura do Colóquio Nacional de Direitos Humanos, na PUC-GO, fez duras críticas à intelectualidade brasileira, em especial a de esquerda. Também destacou a atualidade do marxismo na sua crítica ao capitalismo, demonstrou sua insatisfação com os rumos então tomados pelo governo do PT, condenou as práticas, para ele antidemocráticas, de Fidel Castro em Cuba e de Hugo Chávez na Venezuela e destacou a necessidade de recuperar a tradição socialista libertária e não marxista, entre outros temas relacionados aos dilemas da esquerda na contemporaneidade. Confira a seguir.
Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, virou um certo lugar-comum dizer que os conceitos de direita e de esquerda tornaram-se obsoletos. Em seu mais recente livro, A Esquerda Difícil, fica evidente que essa distinção, para o senhor, permanece válida. O que significa ser de “esquerda” e de “direita”, hoje?
A experiência, sob muitos aspectos trágica, do século XX complica a distinção entre direita e esquerda. Mas não a anula. Revelou-se uma nova dimensão, muito sinistra: a do totalitarismo, com uma variante de direita e uma variante de esquerda. Ser de esquerda continua sendo lutar pela redução das desigualdades e também pelas liberdades. Só que o problema das liberdades ganhou uma relevância considerável, na medida em que ele foi escamoteado por uma parte importante da esquerda.
Na introdução de A Esquerda Difícil, o senhor aponta as dificuldades de dois discursos da esquerda que estão em lados opostos: o primeiro, da esquerda extremista, que se recusa a criticar o socialismo burocrático, e o segundo, de uma esquerda que mal se distingue do discurso liberal e que, nas suas versões mais radicais, chega a defender um verdadeiro fundamentalismo de mercado. Entre esses extremos, qual seria hoje a alternativa para o pensamento de esquerda?
Essa posição poderia ser definida como a de uma esquerda absolutamente intransigente em relação a todas as fórmulas totalitárias, mas que não abandonou de forma alguma a crítica do capitalismo. Isso pode ser entendido a partir da relação que ela deveria ter com o marxismo (embora a definição não deva necessariamente passar por aí). Marx continua interessante e importante para a crítica do capitalismo. Mas como política e também como filosofia da história, o marxismo envelheceu. Ele se revelou incapaz de pensar o fenômeno totalitário. Isso, aliás, converge com o fato de que os totalitarismos puderam utilizar o marxismo, mesmo que adaptado a seus interesses, como ideologia oficial. Ainda aqui é o fenômeno totalitário que mostra o envelhecimento, mas também a leitura interessante, mas unilateral, que Marx fez da democracia.
Em uma entrevista à Folha de S. Paulo, o senhor se disse “assustado” com as posições dos intelectuais brasileiros. É pelo fato de eles insistirem nessas conceituações equivocadas que o senhor aponta?
É. De um lado, tem-se intelectuais que da maneira mais séria do mundo, como se nada tivesse acontecido, nos falam da “violência revolucionária”, ou nos explicam que o que importa é a “história e não o bem e o mal”, ou ainda (sic!) que Cuba caminha para o comunismo (trata-se de referências literais). É uma esquerda jurássica, retaguarda e não vanguarda, que faz muito mal à juventude e só atrapalha na luta pelo progresso social. Depois se tem a turma do “fechamento” da situação. Não haveria mais nada a fazer. Eles partem no fundo do mesmo esquema clássico, só que são pessimistas. Em terceiro lugar, estão os petistas, ou, se preferir, os petistas acríticos. Estes defendem o partido e também os membros do partido diante das acusações de corrupção e denunciam um complô da imprensa. Como observou um colega, certa intelectualidade petista denuncia a imprensa (que, sem dúvida, não é inocente), mas o estilo de certa intelectualidade petista é, ele mesmo, puramente jornalístico. E jornalístico no pior sentido da palavra. Prefiro não dar exemplos. A corrupção é problema sério demais e, na realidade, veio a substituir a violência, isto é, assumiu o papel que tinha a violência no esquema antigo. Assim, a leniência de certos intelectuais petistas diante da corrupção tem raízes profundas e indica a continuidade de uma descrença geral na democracia. Não fosse a crise do “mensalão”, e talvez tivéssemos na presidência, em 2010, um certo ex-ministro petista. Que a intelectualidade petista reflita sobre o que isso representaria. Catástrofe.
O senhor afirma que o ponto forte das ideias de Marx são as suas críticas ao capitalismo. Em que aspectos elas permanecem pertinentes?
O Capital desenvolve uma crítica global do capitalismo que é muito forte, apesar de isso ter sido construído sobre o fundo de um projeto comunista. E ela é, em certa medida, separável do projeto político. O que é forte? A crítica da naturalização do sistema, fenômeno mais atual do que nunca, crítica que está no tema do fetichismo, tema muito rigoroso e quase sempre mal entendido. Está também na análise dos desequilíbrios do sistema (em linhas gerais, não no detalhe da explicação). A análise da contradição entre igualdade e desigualdade no interior do capitalismo democrático (embora ele não utilize esse conceito) também é interessante, mas tem de ser lida de forma crítica, de maneira a repensar o problema das possibilidades da democracia.
O senhor indica como um equívoco do pensamento liberal considerar que a morte dos chamados socialismos despótico-burocráticos seja o equivalente à morte do projeto socialista enquanto tal. Mas ainda há lugar para um ideário democrático-socialista em um mundo em que até as conquistas sociais das social-democracias da Europa se veem ameaçadas pela crise do Estado-providência? É possível pensar em um modelo de socialismo sem uma forte presença do Estado na economia?
Sem dúvida, nada é fácil. Mas o fim do totalitarismo burocrático pseudosocialista (fim que ainda não se deu inteiramente, mas que deve se efetivar em algumas décadas) abre perspectivas. As ameaças às conquistas são sérias, mas não é impossível lutar pela garantia dessas conquistas. Apesar de tudo, muita gente vota à esquerda na Europa. E o socialismo nórdico, que é o que existe de melhor, não está em crise profunda como se pretende. A direita chegou ao poder em alguns dos países nórdicos, mas até aqui o essencial do welfare state se mantém. O Estado continua tendo um papel muito importante (quem poria isto em dúvida?), mas o mecanismo essencial não é mais, sem dúvida, o das nacionalizações. Com isso, não estou defendendo as privatizações, mas a política da esquerda tem de se centrar em outros tipos de medidas, principalmente a de uma revisão radical na cobrança do imposto de renda. Esse foi um dos segredos do socialismo nórdico. Para além disso, há outras coisas, economia solidária, mudanças no plano da participação política, claro, sem pôr em risco, de forma alguma, a democracia representativa. Pode-se enriquecer essa democracia, com formas de participação mais direta.
No ensaio “Para um balanço crítico das revoluções”, o senhor observa que capitalismo e democracia não são apenas autônomos, como também podem se situar em campos opostos. Em outro texto, sobre o totalitarismo, embora rejeitando um certa tendência de enxergar na globalização um movimento totalitário, o senhor não descarta a possibilidade de isso vir a ocorrer a longo prazo. O capitalismo pode, então, representar uma ameaça à democracia?
Vimos, nos Estados Unidos, o desenvolvimento de uma tendência fundamentalista com traços marcadamente antidemocráticos. Felizmente, os neoconservadores de Bush estão, por ora, derrotados. Mas um movimento como aquele mostra até onde pode ir o fundamentalismo de mercado e um certo novo-imperialismo a ele associado. Entretanto, fenômenos como esse não devem levar à ideia de que o capitalismo efetivamente liquidou a democracia. O capitalismo torna a democracia imperfeita, a limita, há na realidade uma luta entre democracia e capitalismo. Essa luta continua, e a pior das coisas seria supor que democracia e capitalismo convergem, ou de que a democracia está liquidada.
O senhor também fala na possibilidade futura de “neutralização” do capital. De que forma o capital poderia ser neutralizado? A ameaça de uma catástrofe ambiental que paira sobre o planeta seria uma maneira de conter o avanço do capitalismo ou até mesmo reduzir a sua ação?
O problema ambiental é da maior importância. Finalmente começou a haver certa mobilização em torno disso, espero que não seja tarde. Quanto a neutralizar o capital, isso pode parecer utópico. Sem dúvida, é uma ideia. Mas ela é mais do que isto. Nos países nórdicos, deram-se passos importantes para assegurar um nível de vida decente para a maioria da população e os serviços básicos de educação, saúde e, em alguma medida, moradia (além de transporte etc.), sem que as liberdades fossem ameaçadas de uma forma qualquer. A partir de fenômenos como esse é possível pensar os projetos para “parar o carro do capital”. Insisto, isto pode parecer utópico, mas seria preciso refletir sobre o fato de que é difícil imaginar que o capitalismo como sistema seja eterno. Mas não supô-lo eterno não implica a ideia da abolição de fenômenos tão antigos e tão universais como a existência da moeda e das trocas.
O senhor descarta a transformação do sistema pela via revolucionária, mas também admite que um processo de reforma pela via parlamentar seja insuficiente. No momento em que vivemos uma crise de representação popular, a quem caberia a luta pelas reformas sociais? Aos movimentos sociais? No caso brasileiro, o senhor enxerga em algum movimento essa capacidade transformadora?
A experiência do século XX descarta todo projeto de transformação pela violência. Mas não aceitá-la não significa não aceitar as lutas. O problema é que os movimentos sociais, que existem e que não são artificiais, sofrem o peso de direções que desde logo tratam de levar a água para o seu moinho. MST e outros não são movimentos sociais, são organizações do tipo quase partidárias. Que eles se apresentem como “movimentos sociais” é a primeira mistificação. São de algum modo parasitas dos movimentos sociais (como foram, historicamente, muitas das organizações de extrema esquerda: por exemplo, mutatis mutandis, as relações entre o PC chinês e as organizações camponesas; o PC chinês usou do movimento camponês em seu próprio proveito). Desde já é preciso denunciar essa instrumentalização e não fazer concessões. Isso, combinado com o empenho em ajudar o movimento camponês, não as organizações que falam em seu nome. Isso é difícil, mas não impossível. E a primeira coisa é pensar o problema, e não ter uma política de avestruz que enterra a cabeça no politicamente correto, com medo de tomar soluções inovadoras e libertárias.
Em um dos ensaios de seu livro A Esquerda Difícil, de 2004, o senhor dizia acreditar na capacidade de o PT realizar um programa de reformas e se tornar um grande partido da esquerda democrática. Uma nota em colchetes acrescentada a este texto informa que o senhor não crê mais nessa possibilidade. O que o fez mudar de ideia?
O grande escândalo da corrupção.
O senhor critica a postura condescendente da intelectualidade de esquerda em relação à China, que se recusa a enxergar no atual sistema do país aquilo que ele é, um sistema capitalista autocrático. Mas essa condescendência também não é compartilhada pelos liberais, entusiasmados com as possibilidades de negócios com a China e que acabam fazendo vistas grossas para a violação dos direitos humanos?
Claro. O totalitarismo foi bem visto por grande parte da esquerda, infelizmente, mas parte da direita sempre teve também uma “quedinha” por ele. Por duas razões bem diferentes. A primeira é o fundo profundamente antidemocrático de boa parte da direita, a segunda é a possibilidade de fazer bons investimentos em países totalitários onde não há greve, o salário é fixado uma vez por todas etc. Esse fenômeno não é novo e não inocenta a esquerda jurássica.
Em seu artigo intitulado “China, capitalismo e repressão”, o senhor observa que a democratização da China é uma possibilidade real, embora a médio e a longo prazos. Com relação a Cuba, que ainda sobrevive no modelo denominado pelo senhor de burocrático-despótico, pode-se dizer a mesma coisa? Ou a morte de Fidel Castro apressaria esse processo?
A morte de Castro alterará algumas e talvez muitas coisas, é certo. Será mesmo, creio eu, o começo do fim do regime. Mas para onde ele irá imediatamente, é difícil prever. Provavelmente, eles tentarão um caminho que terá alguma coisa com o chinês (isso já acontece em alguma medida, mas limitadamente). Quanto ao fim do regime, dizer que ele está condenado não significa que vai desaparecer imediatamente. Os processos históricos são lentos, mas de certo modo inexoráveis.
E com relação à administração Chávez na Venezuela? Que análise o senhor faz?
Chávez vai num caminho próximo ao de Castro, e terminará mal como Castro. Nenhum populismo igualitarista termina bem, porque nele não há democracia. Sem democracia, não só se perde uma dimensão essencial, mas se condena a médio prazo as medidas sociais que se tomaram aqui ou ali. A experiência histórica não para de confirmar isso. Lamentável que alguns intelectuais brasileiros, e também estudantes, embarquem na canoa de Chávez.
O senhor fala da necessidade de o pensamento da esquerda retomar teses da tradição não marxista e da tradição libertária socialista das primeiras décadas do século XX, que não consideravam a liberdade um “capricho” burguês nem aceitavam sacrificá-la em nome da igualdade e de um projeto comunista futuro. Está na hora de o pensamento de esquerda, seguindo o caminho de Marx no Capital, embora não tendo mais o marxismo como modelo único, fazer uma crítica dos seus fundamentos?
Claro que sim. A tradição socialista é muito rica e é muito mais do que Marx. Marx foi provavelmente a maior cabeça teórica da tradição, para o melhor e para o pior (quero dizer que o prestígio intelectual e político dele atrapalhou muito, porque lhe deu força também lá onde ele erra, e erra muito). Na tradição, há muito coisa. Anarquismos e semianarquismos. Críticas ao capitalismo ressalvando a circulação simples, projetos micro e macroeconômicos etc. No plano mais filosófico, há neorromantismo e racionalismos. Para citar alguns nomes: Proudhon, Bakunin, Hodgskin (crítico pré-marxista), Fourier, W. Morris, Kropotkin, no período mais recente, [Rosa] Luxemburgo, o jovem Trotski, Jaurès, também o menchevista internacionalista Martov etc. Não se trata de procurar no passado as soluções. Temos de enfrentar os problemas atuais tais como eles se apresentam, mas de algum modo as soluções vão convergir com alguma ideia do passado, porque se pensou muito e em direções muito variadas. É preciso acabar com a ideia de que tradição socialista e Marx (o marxismo) representam a mesma coisa.