Nenhum de seus biógrafos negaria que Ernest Hemingway (1899-196l) teve uma vida emocionante. Em grande medida, a morte que o levou pode ser considerada uma afronta ao conformismo e à ausência do sentido: o caçador caça a si mesmo. O Pulitzer e o Nobel, quase simultâneos, o engrandecem e o eternizam.
Durante a sua permanência em Paris, as inúmeras experiências intelectuais que viveu, na década de 1920, foram registradas em Paris É uma Festa (1964), que tem valor memorialístico e reúne observação, humor e análise da vida cotidiana e boêmia de uma cidade que, à época, já era “o mundo das fronteiras”: todos sonhadores estavam lá.
Além de romances, reportagens, roteiros e uma peça de teatro, escreveu cerca de 70 contos, incluídos na soma alguns capítulos de livros inacabados. (De vez em quando, é localizado um texto inédito, que não o diminui.) Nesse conjunto de narrativas, é difícil apontar uma que seja considerada insatisfatória, embora Gertrude Stein (1874-1946) tenha empregado o vocábulo inaccrochable quando fez comentários sobre um conto para o qual ele lhe havia pedido a sua opinião, escrito em 1938, com o título “Lá no Michigan”. Tive o prazer de reler esse conto há algum tempo e reencontrei em suas linhas o mesmo sabor esplêndido de quando o li pela primeira vez.
Nessa curta narrativa, a paixão e o desejo da empregada Liz Coates pelo ferreiro Jim Gilmore – que tinha interesse dissimulado por ela – encontram no final da história a sedução ambígua, entre a vontade e a força, a prostração do animal saciado e, surpreendentemente, uma inesperada ternura.
A realização pessoal — que todo escritor almeja — não se deve apenas à ótima técnica que utilizou na materialização de cenários e personagens, apoiada em diálogos que causam inveja a qualquer roteirista pela fluência e coloquialidade — deve-se principalmente àquilo que a sua escritura tem de mais crucial: o substrato autobiográfico (personificado nas aventuras de seu alter ego Nick Adams), a capacidade rara de extrair de situações aparentemente triviais uma história comovente e com lastro documental.
Essa vitalidade narrativa tem suporte talvez no que se convencionou classificar de “estilo duro” (style touch). Em seu Histoire du Roman Américan, editado em 1976 pela Gallimard, Marc Saporta destaca alguns princípios que orientam a literatura de Hemingway: a preferência pela ação das personagens no lugar do tratamento psicologizante, a utilização de palavras precisas, a repetição que amplia o ambiente ao mesmo tempo em que colore o ritmo da frase, enfim, uma variedade de locais e climas nos quais os episódios são encerrados. Por mais convincentes que sejam, essas caracterizações – excessivamente genéricas – podem ser também repertoriadas em muitos outros autores.
Tantas vezes reconhecido como um diferencial em sua literatura, esse estilo vigoroso, que realça ideias e descarta o inútil, não pode certamente ser desvinculado das opções que fez na sua trajetória de homem e escritor. Como muitos outros, Hemingway não separou a vida da literatura. É assim que, na sua vivência europeia, participou dos três principais confrontos de sua época (as duas grandes guerras e a Guerra Civil Espanhola), transferindo-se, já perto de se matar, para Cuba, onde encontrou tranquilidade para escrever mais uma obra-prima. Pensando obliquamente, Santiago, a personagem de O Velho e o Mar, parece condensar, como em uma colagem, vários dos tipos humanos que o autor moldou. A ficção é o simulacro da realidade, já nos ensinava Roland Barthes.
Graças a essa disposição errática, legou-nos histórias inesquecíveis sobre conflitos e indivíduos rudes, ingênuos e violentos. A tensão da guerra, o embate ideológico, a corrida de cavalos, a caça, a vadiagem, os gângsteres, a tourada, a pesca de trutas, o mar e as intempéries — ele abordou todos estes e muitos outros assuntos com tanta propriedade que, às vezes, na delicadeza e na brutalidade de suas histórias curtas, esquecemo-nos de seus outros livros, que não deixam de nos revelar a sua imensidão.
Guardada para sempre em nossa memória de leitores, essa série de contos está impregnada de uma sabedoria que nos serve de baluarte até hoje: talvez a literatura seja mais próxima de nossa alma e mais verdadeira quando eivada de paixão, conhecimento, destemor, naturalidade… Ao recusar o fácil e o banal, além de arriscar-se na História do seu tempo, Hemingway mostrou-nos, na vida e na literatura, uma direção que, nestes tempos ímpios, não deve ser menosprezada.