Bob Dylan desembarca de sua “trip cristã” com um álbum chamado Infidels, em 1983. A expressão que adjetiva o período gospel do bardo de Minnesota vem de Caetano Veloso, por meio da canção Ele me Deu Um Beijo na Boca (Cores, Nomes, 1982): “O fato é que há um istmo/ Entre meu Deus e seus deuses/ Eu sou do clã do Djavan/ Você é fã do Donato/ E não nos interessa a trip cristã/ de Dylan Zimmerman”.
A alfinetada não impediu o compositor baiano de prestar muitas homenagens posteriormente, como a bela versão de Jokerman (Circuladô Vivo, 1992; a original abre Infidels) e a menção em A Bossa Nova é Foda (Abraçaço, 2012), recordando o apreço de Dylan pela música de João Gilberto. A Foreign Sound, disco de 2004 em que Veloso canta clássicos norte-americanos, tem esse título por conta de um trecho de It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding) (Bringing It All Back Home, 1965), que também é gravada em sua voz. O influxo passional da obra de Zimmerman na de Caetano está explicado em Verdade Tropical (1997).
Distanciando-se, então, da pregação cristã – mas jamais abandonando referências bíblicas –, com um trabalho intitulado Infiéis, Bob Dylan delineia um mundo sobremodo cruel, onde a exploração do homem pelo homem chega ao limite do absurdo e não há verdades palpáveis nem pôr do sol imaculado. No entanto, o cancionista deseja entregar mais uma vez seu testemunho individual, sem a obrigação anterior de levantar bandeiras específicas, vez que estas são enganosas. Não à toa, o primeiro esboço de nome para a obra era Surviving in a Ruthless World, algo como “Sobrevivendo em um Mundo Impiedoso”.
Os parágrafos iniciais aproximaram Dylan e a cultura brasileira de maneira feliz: o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) emprestará ao texto seu “mundo caduco”, a fim da mais interessante caracterização de meados da década de 1980 no inventário artístico de Bob Dylan. Convém focalizar Sentimento do Mundo (1940) como sustentáculo principal da análise, em suma porque os paralelos advêm da constatação de que o planeta denunciado por Drummond na obra é o ruthless world de Infidels. Murilo Marcondes de Moura, em posfácio ao livro, diz que “Uma das significações do título é exatamente esta: lugar de danação, onde o homem não pode aspirar a coisa nenhuma, onde se encontra fechado entre ‘duas paredes’ sob um ‘céu vazio’”.
Pedras rolando ou paradas no meio do caminho não são, portanto, assunto do momento. Paridades biográficas, contudo, saltam aos olhos: Duluth e Hibbing, onde Bob Dylan nasceu e cresceu, guardam semelhança com Itabira, a tão bem-cantada cidade natal de Carlos Drummond de Andrade, lugares interioranos cuja atividade econômica primeva e força motriz social é a mineração. Conforme adiante se explicitará, ambos alternam entre a cultura de massa e a arte elitizada sem prejuízo e, não obstante, por vezes deitaram abaixo as próprias convicções, reconstruindo suas obras sob pontos de vista imprevisíveis e inovadores. Esse tipo de aproximação é urgido com brilhantismo por Um Mundo Feito de Ferro: A Lírica de Drummond e Bob Dylan (2018), tese de doutorado de Fernando Baião Viotti, que também explica as polêmicas fronteiras existentes entre poesia e letra de música. Aqui, conforme dito, o melhor cotejo dar-se-á entre momentos-chave dos dois artistas, como forma de compreender e imaginar vieses interpretativos fora da curva.
Informa, pois, Murilo Marcondes de Moura, aludindo ao livro anterior do itabirano, Brejo das Almas (1934), que “É difícil imaginar mudança mais radical, mas em Drummond oposições muito estanques devem ser evitadas sempre. […] Do ‘brejo’ para o ‘mundo’ o percurso deve ter sido longo e complexo e o poeta trouxe consigo alguma treva”. Oposições estanques também devem ser afastadas quando estuda-se Dylan, verdadeiro reinventor de si. Não há, do mesmo modo, dúvida da carga de treva que ele trouxe à tona, após a fase gospel, nas letras de Infidels, destrinchadas a seguir, talvez porque “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus”, como Drummond sugere no verso inicial de Os Ombros Suportam o Mundo.
Aliás, o Poema da Necessidade é assertivo em caixa alta: “É preciso viver com os homens,/ é preciso não assassiná-los,/ é preciso ter mãos pálidas/ e anunciar o FIM DO MUNDO”. Bob Dylan, em I And I, considera que “O mundo pode acabar esta noite, mas está tudo bem”, canção cujo refrão enigmático diz “Eu e eu, na criação onde a natureza de alguém não honra nem perdoa/ Eu e eu, um diz ao outro: homem nenhum vê minha face e vive”. A referência é a Êxodo 33:20, em que Deus negou a Moisés a possibilidade de ver seu rosto com as mesmas palavras. A toada não é estritamente pessimista, mas atesta a humanidade entregue à própria sorte – relegada ao convívio desgastante dos humanos entre si e consigo mesmos –, ainda que a esperança seja possível e persegui-la torne-se elã vital da sociedade.
Tal é a humanidade que, no entanto, mediante a exploração capitalista, repercute desigualdades mais próximas à tragédia do que ao alento. Em Union Sundown, Dylan constata que seus sapatos vêm de Singapura, o jarro de flores do Paquistão, a toalha de mesa é malaia e ele dirige um Chevrolet montado na Argentina. “Toda a mobília diz ‘made in Brazil’/ Onde uma mulher foi escravizada com certeza/ Levando ao lar trinta centavos por dia a uma família de doze/ Você sabe, é muito dinheiro para ela”. Observar a cadeia de produção sinistra que perpassa cada objeto cotidiano com consciência emocional é perturbador: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo,/ mas estou cheio de escravos”, confessa Carlos Drummond de Andrade no poema homônimo à sua obra em análise. Union Sundown e os versos de Sentimento do Mundo, então, parecem dialogar. Enquanto Bob Dylan diz que “A democracia não rege o mundo/ É melhor colocar isso na sua cabeça/ Esse mundo é regido pela violência/ Mas penso que é melhor deixar quieto/ Da Broadway à Via Láctea/ É muito território de fato/ E um homem fará o que tiver de fazer/ Quando tem uma boca faminta para alimentar”, Drummond responde: “Os camaradas não disseram/ que havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento./ Sinto-me disperso,/ anterior a fronteiras,/ humildemente vos peço/ que me perdoeis.”
License to Kill apresenta o homem como máquina propensa à destruição, moldada para exterminar seus iguais e subjugar a natureza (Man has invented his doom, first step was touching the moon). Entretanto, segundo o eu-lírico, “Agora há uma mulher no meu quarteirão/ Ela se senta ali enquanto a noite cresce/ Ela diz: Quem vai tirar dele a licença para matar?”. Essa noite provavelmente é a imediata ao pôr do sol de Union Sundown, e está contida em A Noite Dissolve os Homens, ao sabor da lírica drummondiana – “A noite desceu. Que noite!/ Já não enxergo meus irmãos”, pois “Nas casas,/ nas ruas onde se combate,/ nos campos desfalecidos,/ a noite espalhou o medo/ e a total incompreensão”. É a suprema escuridão do mundo caduco, rico apenas em guerras, pátrias dissolvidas, disputas ideológicas e morte, sobretudo morte, vez que “A noite anoiteceu tudo…/ O mundo não tem remédio…/ Os suicidas tinham razão”. O amanhecer, todavia, representa o elã vital aludido e traz boas-novas, dispersa as sombras e promete fazer do sangue derramado um sacrifício necessário para a redenção vindoura: “Aurora,/ entretanto eu te diviso, ainda tímida,/ inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que repartirás com todos os homens”, já que “O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos” e “Havemos de amanhecer. O mundo/ se tinge com as tintas da antemanhã/ e o sangue que escorre é doce, de tão necessário/ para colorir tuas pálidas faces, aurora”. A diferença é que, em License to Kill, não há a certeza de que a noite deveras termine, estando claro somente que ela cresce.
Todas as canções de Infidels reverberam o mundo caduco que Mãos Dadas e principalmente Elegia 1938 – “Não serei o poeta de um mundo caduco”, “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco” e assim por diante, recomendando-se a leitura íntegra para a perfeita ambientação – colocam em cena de forma tão magistral. Aliados, livro e álbum sustentam uma visão homogênea do estado de desesperança especial dos seres humanos no século XX.
Com menos ou mais intensidade, a semelhança exsurge também em trabalhos posteriores de ambos. Em, por exemplo, Political World, canção que inicia Oh Mercy, disco de 1989, Dylan revela que, no mundo político em que vive, não há espaço para o amor, a sabedoria está encarcerada e a misericórdia anda na prancha. A faixa seguinte, Everything is Broken, complementa: “As ruas estão repletas de corações partidos/ Palavras partidas que nunca seriam ditas/ Tudo está partido”. “Partido”, e não “quebrado”, é a melhor tradução para broken no trecho, mas a informação geral da canção é de que tudo, dos objetos às relações interpessoais, está defeituoso, danificado. Carlos Drummond de Andrade, no poema Nosso Tempo, do livro Rosa do Povo (1945), condensa a mensagem de Political World e Everything is Broken em um único e genial dístico – “Este é tempo de partido,/ tempo de homens partidos.”
Assim, retorna riquíssimo o paralelo estabelecido pela imaginação ao estudar os dois autores e o diálogo entre as obras em tela. As breves linhas prometem servir de aperitivo à imersão profunda no trabalho de ambos, que são, sem sombra de dúvidas, ícones incontornáveis da cultura hodierna – que ganha ainda mais espessura de significados com a comparação realizada.