[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
O desenvolvimento de novas tecnologias, desde as mais rudimentares às mais sofisticadas, determinou a evolução do homem em sociedade e fomentou seu desenvolvimento, não apenas em termos técnicos, como também intelectuais. O desenvolvimento tecnológico permitiu ao homem pensar sobre si e definir a si mesmo como indivíduo único e social a partir da troca de informações e ideias. Johannes Gutenberg – o homem que, no século XV, estabeleceu a imprensa e ganhou renome por permitir que a informação saísse dos claustros eclesiásticos e chegasse ao cidadão comum – é de longe muito distinto do homem que dominou o fogo ou forjou a primeira lança – homem que nem sequer nome próprio tinha. Com efeito, as tecnologias de informação no mundo contemporâneo e os homens que a produzem e a consomem chegaram a distâncias muito mais largas que aparentam os meros seis séculos desde que os primeiros tipos móveis compuseram a primeira folha de rosto.
A sociedade contemporânea é regida pela informação. As novas tecnologias de comunicação moldam o comportamento e as opiniões do público, o que não é em si necessariamente um problema, pois nossos pontos de vista e atitudes são dependentes das informações e valores que recebemos. Entretanto, é preciso a tomada de uma postura crítica em relação às informações que consumimos, o que configura um grande esforço diante do volume absurdamente alto de informações que circulam pela mídia tradicional e, principalmente, por redes sociais, tais como Facebook, WhatsApp, Twitter, entre outros.
Além disso, se, por um lado, a internet e as redes sociais tornaram o processo de comunicação muito mais fluido e veloz, por outro, impuseram um problema: a amplitude e a facilidade de acesso a esses meios criaram um ambiente propício à divulgação de informações falsas, as chamadas fake news, já que são ferramentas extremamente suscetíveis à imprecisão dos fatos e à falsidade de dados, isto é, como comenta Evagelidis (2019, p.139), “[…] criam dúvidas sobre a qualidade e a confiabilidade da informação”.
Nesse contexto, em um ambiente que preza a agilidade da comunicação e onde o público age, não apenas como receptor, mas também como emissor, ou melhor, replicador, a informação tornou-se, mais que nunca, uma poderosa mercadoria. Em estudo recente sobre o papel dos meios digitais de comunicação durante a campanha eleitoral de 2018 no Brasil, Costa (2019, p. 15) aponta:
A revolução digital criou um novo ambiente de comunicação pública muito diferente daquele das mídias tradicionais. Em primeiro lugar, ele resulta de um empreendimento comercial privado que atende prioritariamente aos seus interesses financeiros. Desse modo, apesar da sensação de individualidade, publicidade e gratuidade das redes sociais, elas são produtoras de conteúdo e estão a serviço do marketing e da realização de negócios voltados para a venda de informações.
Sob essa ótica, faz-se ainda mais urgente uma postura crítica em face das informações que nos circundam. É preciso questioná-las. O dilema é: no mundo contemporâneo, é possível desenvolver pensamento crítico em relação a algo que nos impacta de maneira tão pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva, como a forma em que nos comunicamos? A resposta pode estar na filosofia, pois falar de pensamento crítico é falar de filosofia. Considerando algumas posições do filósofo francês Alain Badiou e do filósofo brasileiro Hilton Japiassu, é possível entender como a prática filosófica pode contribuir para o dilema da comunicação.
Ao tratar da prática filosófica, Badiou faz alusão à função crítica da filosofia – que chama de “revolta do pensamento”. Segundo o filósofo (2002, p. 11): a filosofia é “[…] descontente com as opiniões dominantes […]”. Em A situação da filosofia no mundo contemporâneo, Badiou (2002, p. 12) invoca o “desejo de filosofia” e o caracteriza a partir de quatro componentes: a revolta, a lógica, o universal e a aposta.
A revolta diz respeito à quebra de paradigmas, à ruptura com o pensamento dominante, que tende a se tornar senso comum. A lógica trata da argumentação, do estabelecimento de um pensamento racional. O conceito de universalidade determina que a filosofia abranja toda forma de pensamento, que a filosofia não tenha fronteiras, e que aquele que pensa não o faça tendo em vista os limites das suas próprias particularidades. Para romper esses limites e de fato praticar o pensamento filosófico, a aposta e o risco são elementos necessários, pois levam ao encontro do “outro”, do diferente, e fazem com que o pensador se engaje no risco de sair da sua zona de conforto e “apostar na própria existência” (Badiou, 2002 p. 14).
A comunicação de massa, sob essa perspectiva, parece ir na contramão do desejo da filosofia, pois, a todo momento, somos bombardeados por notícias e interpretações fáceis, já digeridas por vídeos, podcasts, tuítes, memes e análises rápidas e sensacionalistas, tudo isso para atender ao mercado da informação. Tem-se a impressão de que a sociedade se acomodou na facilidade do consumo, que não faz críticas ao pensamento dominante e que não busca coerência racional. A única universalidade conhecida, como afirma Badiou (2002, pp.13-14), é a universalidade do dinheiro e, nesse cenário, o particular, o individual, sempre aparece mais valorizado que o universal, o social, afastando qualquer prática de engajamento crítico, favorecendo assim o conformismo, a comodidade e a segurança pessoais.
Paralelamente, Japiassu (1997, p. 41) aponta razões das resistências à prática do pensamento filosófico em nossa sociedade:
É porque o pensamento filosófico apresenta um duplo inconveniente: a) ensina-nos a criticarmos (não rejeitar, mas passar ao crivo, examinar) as opiniões recebidas ou impostas, as tradições transmitidas e as ideias admitidas; b) ensina-nos a ultrapassar o conformismo e o não-conformismo em vista de uma coerência sempre maior do pensamento e da ação. Se nos resignarmos com o fato de já sermos “mestres e possuidores da natureza”, corremos o risco de ser joguetes das paixões mortíferas de nossa existência coletiva.
Talvez seja por conta dessa resignação que a opinião pública no Brasil esteja tão sujeita às fake news, pois o público já se encontra conformado – e até satisfeito – com suas opiniões. Diante da massiva oferta de informações, torna-se mais cômodo ao público consumir informações que corroborem suas ideias já concebidas sem a necessidade de questioná-las, sem correr o perigo de contrariá-las. Evidência disso é a polarização ideológica entre esquerda e direita no cenário político brasileiro. Polarização que caracterizou o processo de eleição presidencial no Brasil em 2018, quando os meios de comunicação digitais alimentaram posicionamentos extremistas, fato apontado por Petrola (2019, p. 117):
Sites, blogs e redes sociais tiveram papel importante na polarização ideológica durante esse período. Além da blogosfera de esquerda, também proliferaram blogs e perfis em redes sociais com outras plataformas ideológicas, desde ultraliberais defensores do Estado mínimo até grupos de extrema-direita favoráveis a uma intervenção militar.
Diante dessas questões, é até compreensível a dificuldade do pensamento crítico e, consequentemente, da prática filosófica. Contudo, ela não é impossível e tem se mostrado cada vez mais urgente. Ainda que a comunicação de massa esterilize, de certo modo, o terreno das ideias, ela também permite plantar o desejo de filosofia. A existência de canais de comunicação que proponham o questionamento dos fatos, em vez da simples entrega de uma análise pronta dos acontecimentos, por exemplo, é uma forma de revolta, de recusa do conformismo. Esses canais, tenham eles amplo ou restrito alcance, abrem espaço para a argumentação, para a lógica, permitem o contraponto, o choque de divergências, não para dividir, mas para debater e, talvez, transformar. Assim, apesar das dificuldades, há espaço para a filosofia no mundo contemporâneo, e os meios de comunicação podem valer-se dela para servirem, como o fez a primeira bíblia impressa por Gutenberg, a uma reforma de pensamento.
Referências:
BADIOU, A. A situação da filosofia no mundo contemporâneo. In: Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. pp. 11-19.
COSTA, MCC. Liberdade de expressão e campanhas eleitorais. In: Liberdade de expressão e campanhas eleitorais – Brasil 2018. São Paulo: ECA-USP, 2019. pp. 10-42.
EVAGELIDIS, José Esteves. Crise na imprensa e o desafio das redes sociais. in: COSTA, Cristina; BLANCO, Patrícia. Liberdade de expressão e campanhas eleitorais – Brasil 2018. São Paulo: ECA-USP, 2019. pp. 137-166.
JAPIASSÚ, Hilton. Um desafio à filosofia: pensar-se nos dias de hoje. São Paulo: Letras & Letras, 1997. pp. 39-50.
PETROLA, José Ismar. Fake news e a disputa entre grande imprensa e redes sociais na campanha eleitoral de 2018. in: COSTA, Cristina; BLANCO, Patrícia. Liberdade de expressão e campanhas eleitorais – Brasil. São Paulo: ECA-USP, 2019. pp. 110-136.
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O texto é o 15º e último da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.
- Diálogos Atemporais, de Augusto Henrique Gamarra de Souza, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/20/dialogos-atemporais/.
- A Pluralidade Histórica e os Sistemas de Valor, de Marielly Romeu Marcelino, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/27/a-pluralidade-historica-e-os-sistemas-de-valor/.
- O Projeto Radical de Uma Filosofia Científica, de Marcio Ponciano da Cunha Junior, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/06/o-projeto-radical-de-uma-filosofia-cientifica/.
- Sobre a Percepção do Mundo e o Problema de Comunicá-la, de Thiago Vareiro Valério, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/13/sobre-a-percepcao-do-mundo-e-o-problema-de-comunica-la/.
- Desordem, de Giullia Vila Alves, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/20/desordem/.
Belo texto!