Dizem que na velhice os dias se tornam todos iguais. Na pandemia, a solidão, o medo e o ócio se tornaram companheiros de muita gente. Quem sai todos os dias para trabalhar e estudar, e tem o hábito de ir ao barzinho encontrar os amigos, viajar e se divertir sentiu na pele o drama da reclusão.
Ator, diretor, professor, dramaturgo, cenógrafo, coreógrafo, figurinista e músico, Hugo Rodas, nascido no Uruguai há 82 anos, mas com o coração brasileiro, garante que não sentiu tanto assim o impacto do isolamento imposto pelo coronavírus. Trabalhou intensamente no seu apartamento em Brasília, cidade que escolheu viver há mais de 40 anos, e também em Goiânia, onde não faltam convites para dirigir e atuar.
Apesar de odiar esse momento, Hugo Rodas garante estar vivendo uma fase pessoal maravilhosa, sublime até, fazendo o que gosta, ao lado de pessoas queridas como a diretora Valéria Braga e os atores Rodrigo Cunha e Rodrigo Jubé, com quem fez o vídeo Hábitos Noturnos, que estreou esta semana no canal do Youtube da Casa 107. O projeto foi contemplado pela Lei Municipal de Cultura há dois anos, o que garantiu um patrocínio importante em tempos difíceis para todos os artistas.
Autor do roteiro, Rodrigo Cunha inspirou-se no filme Clube da Luta , dirigido por David Fincher, em 1999. Baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk, o filme destaca a vida de um homem deprimido que sofre de insônia. Um dia ele conhece um estranho vendedor. Com ele, funda um clube de luta com regras rígidas e violentas. Além da violência cotidiana, o roteiro fala de insônia, um distúrbio que acomete milhões de pessoas em todo o mundo e que ,segundo pesquisas, ganhou grandes proporções na pandemia. Não é só. Rodrigo explora outros temas como a irritação, a raiva e a luta diária que a falta de sono acarreta naqueles que não conseguem dormir. O tema, explica a diretora Valéria Braga, é denso, permeado de violência. “O desafio maior é mostrar como a sociedade processa esse tipo de violência cotidiana”, diz.
Foram dois dias intensos de filmagens na Casa 107. Com uma equipe reduzida, tomando todos os cuidados sanitários que a pandemia exige, Valéria Braga elegeu a piscina e a varanda da casa como cenários. Instalou um enorme andaime na piscina e iniciou os trabalhos com os três experientes atores. Sua intenção é transformar o vídeo de 35 minutos em um seriado. “Não podemos classificar Hábitos Noturnos, porque o que fizemos não é cinema, não é teatro filmado, é um vídeo que narra uma história filmada com habilidade teatral. O resultado nos agradou muito”, sublinha a diretora.
Ator de grande potencial, Rodrigo Cunha explora muito bem suas habilidades vocal, corporal e interpretativa para personificar seus personagens. Tem feito trabalhos de grande intensidade dramática no teatro, sob a direção de Valéria Braga, alcançando resultados surpreendentes. Entre seus grandes momentos no palco está Espécie, monólogo visceral no qual se transforma em macaco. Com o espetáculo, viajou para diversas cidades por meio do projeto Palco Giratório do Sesc e também para o exterior.
Hábitos Noturnos é sua estreia como roteirista de cinema, uma paixão que vem da infância. Para escrever o roteiro, Rodrigo Cunha mergulhou fundo na pesquisa. Observando os animais de hábitos noturnos no Jardim Zoológico, chegou ao título do vídeo, que, explica, tem muito de experimentação. Na construção do personagem, intensificou a preparação corporal com aulas de boxe, kung fu, crossfit, musculação, e claro, muita observação daqueles que trocam o dia pela noite.
Diretora experiente no trato com os artistas, Valéria Braga considera um desafio dirigir Hugo Rodas, um ator inquieto e exigente. Foi uma troca de posições. Rodas dirigiu-a em espetáculos marcantes como Memória Roubada e Olho na Fechadura. “ Nos conhecemos há mais de 20 anos”, brinca o ator/diretor, garantindo que não interferiu em nada no trabalho da pupila. Deixou-se dirigir como um profissional . “Foi uma ótima experiência atuar com os dois Rodrigos e ser dirigido pela Valéria, uma amante antiga. Temos muita sintonia. O resultado está aí para todo mundo ver”, elogia Rodas.
Valéria Braga considera Hábitos Noturnos um ato de resistência diante do cenário sombrio da pandemia do coronavírus e as dificuldades enfrentadas pela classe artística, que vive momentos de grande incerteza. “A classe artística foi duramente impactada, daí a importância de mostrar que a arte está viva apesar de todas as dificuldades que enfrenta.”
Inquietude
Apesar da dificuldade de locomoção, e do tratamento contra o câncer, Hugo Rodas está mais ativo do que nunca. Não recusa trabalho. Os convites chegam e ele agarra-os com muita disposição. Muitas vezes, divide-se entre Brasília e Goiânia, pois há sempre um ator ou um coletivo disputando sua competente direção.
Ano passado, nos primeiros meses da pandemia do novo coronavírus, Hugo Rodas produziu um espetáculo com dois atores (uma bailarina e um cantor) no seu próprio apartamento no Distrito Federal. Poema Confinado ou Caleidoscópio, segundo ele, “foi uma experiência maravilhosa”, que o manteve ocupado, assegurando a própria sanidade e a sintonia com a arte. Fundado no seu tempo de professor na Universidade de Brasília, onde aposentou-se em 2010, o coletivo Agrupação Teatral A Macaca permanece vivo e atuante. Diversos projetos estão engatilhados e a expectativa é que eles movimentem a cena cultural da capital federal quando a pandemia for controlada.
Hugo sente falta do convívio diário com as pessoas, do estresse da produção e da ansiedade das estreias. “Tenho necessidade de estar no meio das pessoas, de criar, de produzir. Tudo tem de ser rápido. Sou exigente, insuportável até”, revela. Que o digam Guido Campos Correa, Adriana Veloso, Valéria Braga e tantos outros atores goianos que trabalham com ele. “Minha paixão pelo que faço confunde as pessoas. Sou intenso, rápido, exigente. Quero que sigam meu ritmo”, afirma.
Com a Agrupação Teatral, tem 18 projetos engatados, alguns deles aprovados no Fundo de Arte e Cultura do governo federal. Entre eles, está um espetáculo infantil ao ar livre, com bonecos gigantes. Em fase de produção, a montagem está ocupando grande parte do seu tempo. “Será uma loucura maravilhosa, com muita diversão e alegria.”
Respirando arte no dia a dia, Hugo Rodas enfrenta com disposição as sessões de quimioterapia e o isolamento. Na medida do possível, mantém o bom humor. Garante que, apesar de tudo, a doença deixou-o mais brilhante, mais livre, com mais vontade de viver. “Nunca tive medo de dizer o que penso, de fazer o que gosto. Acho que fiquei até mais corajoso.” O convite de Valéria Braga e Rodrigo Cunha para atuar em Hábitos Noturnos deixou-o animado e feliz. “Adorei fazer esse filme. Para mim, foi quase uma catarse. Quando terminei de filmar, chorei muito”, confessa.
Também confessa ter se sentido muito angustiado durante a noite nos primeiros tempos da pandemia. Antes desse período de isolamento, a noite para ele era sinônimo de ensaios, apresentação de espetáculos, rodadas com os amigos nos bares. “De repente ficar dentro de um pacote sem muito o que fazer, completamente só, foi muito triste. No filme, tive oportunidade de reviver esse momento”, conta.
Com um extenso currículo de peças realizadas, Hugo Rodas lamenta o fato de o teatro não ter condições de andar sozinho, sem necessidade de estar sempre de pires na mão em busca de leis de incentivo e patrocínio. “Não deveria haver necessidade de editais, de leis. O teatro precisava ser independente e não oficial. É muito bom não depender de quem você critica”, arremata.
Filme: Hábitos Noturnos
Direção: Valéria Braga
Roteiro: Rodrigo Cunha
Elenco: Hugo Rodas, Rodrigo Cunha e Rodrigo Jubé
Disponível no Canal do Youtube da Casa 107
Confira o vídeo Hábitos Noturnos abaixo: